As pessoas que mais gosto tem preguiça de mim
ELA.
Então começou de novo o meu cansativo ritual da cozinha, o processo se repetia como todas às vezes. Eu realmente deveria começar a ir menos até a cozinha, sabendo que este simples ato cotidiano implica nesse tremendo cansaço mental. De verdade. Mas o que eu posso fazer? Tenho que comer também né? O problema não é o lugar em si, eu gosto de cozinhas. Elas são (geralmente) muito limpas, brancas e cheias de utensílios que ninguém sabe pra que servem. Acho que esse que é o problema. Pensem bem, até a menor das cozinhas é um grande oásis de organização dentro da mais suja das casas. Bom, acho que se alguém não lavar a louça e deixar as coisas fora do lugar isso ia ser quebrado, mas eu gosto de acreditar que todos cuidam das suas cozinhas. Eu faço o máximo pra cuidar da minha (que é bem grande), organizando gavetas, armários, potes e panelas. Milhares de pequenas coisas para me entreter. Resumindo, a cozinha é um lugar muito cheio de detalhes pra uma mente perigosamente minuciosa como a minha. De verdade, eu me perco nos detalhes. Vou para o meu mundo. Esse é o meu lugar de paz. Considero um parque de diversões portátil dentro da minha casa, sério. E ainda posso comer de graça nela.
Fui lavando a louça, que é minha atividade preferida dentro da cozinha. De longe. Não há nada melhor do que lavar a louça. Fui realmente aproveitando, olhando a água escorrendo e reparando nas pontas gordinhas das colheres e nas patinhas metálicas dos garfos. Percebi como são parecidos, mas cada um com o seu propósito dentro da cozinha, e em uma refeição. Acho que talheres sempre são ótimos para metáforas. Desde que eu me entendo por gente, vejo a vida como uma “antropomorfização” da cozinha em geral. Poeticamente falando, se me permitem, vejo a vida no reflexo de uma colher reluzente. Por mais deprimente que isso seja. Eu sei, é um pouco deprimente. Bom e Isso tudo acontece sempre que eu lavo a louça. Perco-me pensando se garfos são uma simples evolução das colheres, ou o contrário. Parece coisa de gente maluca, eu sei. Mas hoje especificamente, eu estou muito nervosa. Muito mesmo. Nem consigo lavar a louça direito. Preciso desse meu momento com os garfos. Realmente preciso.
- Lavando a louça de novo minha filha?
Minha mãe. Certamente uma pessoinha muito difícil de conviver. Chegou (como de praxe) correndo pelo chão xadrez impecavelmente limpo da cozinha só para me criticar. Com esse simples propósito. Minha mãe vive para me criticar. Lá estava ela, como que apontando “uma arma de julgar” diretamente na minha cabeça, vestida com o seu figurino de sempre. Umas pantufas de bichinho muito velhas (que já não dava mais pra identificar qual bicho que era, mas eu tenho quase certeza que era o Scooby Doo, há 15 anos claro); A sua “roupa de andar em casa” (que na verdade ela usava em todos os lugares, sério) que é nada mais nada menos que um roupão. Um roupão velho e encardido que mais parecia um quimono de vez em quando; e é claro, o último item indispensável para a minha mãe, uma garrafa de alguma coisa alcoólica na mão (Hoje era uma tequila, eu acho, não sou a maior conhecedora dessas coisas). E essa é a minha mãe.
- Ah mãe, me deixa em paz um pouquinho. Esse é o meu momento, você sabe disso.
- Quantas vezes você já lavou a louça só hoje? No mínima umas cinco, menina! Cinco. Nós nem usamos tanta louça aqui nesta casa.
- Essa é no máximo a terceira vez mãe. Me deixa em paz com isso um pouquinho. Você sabe que pra mim é muito relaxante. Você sabe disso mãe.
Agora comecei a esfregar os pratos com muita vontade. Realmente ensaboando aqueles discos brancos, ensaboava como se a minha vida dependesse disso. De verdade. E enquanto esfregava, só me restava encarar a imagem de uma menina nervosa e confusa refletindo no prato. Olhos tristes escorrendo o que pareciam ser lágrimas, mas não eram. Era somente o sabão escorrendo pelo prato. As lágrimas também estavam ali. Eu sei que estavam. Isso me preocupava. Pensava no bem-estar dela. Continuava ensaboando.
- Como lavar a louça pode ser relaxante? Chegou num ponto que você só me deprime. Sabia disso Maria Lúcia? Você só me deprime. Nada mais do que isso.
Então ela virou a garrafa subitamente, despejando a tal bebida pela garganta com prazer. Minha mãe precisava disso tanto quanto eu precisava da louça eu acho, ou da cozinha. Por um segundo a garrafa também pôde refletir o rosto da mesma menina triste. Fiquei um pouco mais inquieta depois disso. Já estava bem confusa.
- Mãe, eu preciso disso. É uma terapia pra mim. Eu não tenho ninguém pra realmente conversar, alguém pra ouvir os meus problemas com atenção. Sei lá. Talvez eu devesse ir a um psicólogo ou algo assim. Ando me sentindo meio perdida.
-Psicólogo? Pra quê pagar psicólogo? Só pra você falar mal de mim? Como assim não tem ninguém pra conversar? E os seus amigos? E aquele teu namoradinho?
- Quem? O Durval?
- Esse é aquele que não para de mascar palitos de dente nunca? Não suporto aquele garoto. Ele sempre cheira a Hipoglós, não imagino porque razão. Não sei por que você sai com esse menino Maria Lúcia.
- Não, não mãe! Esse é o Afonso, ele veio uma vez aqui em casa e só ficou por 10 minutos. Também não gosto muito dele não. O Durval mãe, meu amigo desde os 5 anos de idade mais ou menos. Baixinho, barbudo.
- Ah, melhorou um pouco. É aquele que sempre anda com um bloquinho ou algo assim?
- É! Então, ele não é meu namorado, mãe! Como você não sabe disso?
- Bom, tanto faz. Não pode conversar com ele em vez de querer gastar o meu dinheiro?
Cheguei aos copos agora. Eu gosto muito dessa parte. Parece que copos foram feitos para serem lavados. Eles encaixam perfeitamente com o contexto da limpeza. Perco horas e horas só passando a esponja pelas suas curvas e botando água. Eu acho incrível como alguém não se diverte com isso! Vocês (mundo) realmente não gostam de lavar a louça? Sério isso? Tudo bem então, sobra mais pra mim eu acho. Fiquei realmente mais tranquila pensando sobre os copos, mas então me lembrei da pergunta da minha mãe.
- Não pode conversar com ele Maria Lúcia?
- Não mãezinha! Não posso conversar com ele! Ele é ainda mais perdido do que eu, poxa. De verdade. Não ia ajudar em nada. Ele não sabe nem chegar à própria casa direito.
- Bom, continue com os seus problemas Maria Lúcia. Eu vou de fato resolver alguma coisa.
Então minha mãe foi “resolver alguma coisa”. O que pra mim pode parecer muito pouco, pra ela talvez realmente seja resolver algo. Ela foi fazer um sanduíche. De verdade. E não foi fazer um fantástico super sanduíche, não, não. Ela come vários sanduíches só com queijo. Só queijo, é sério. Cresci achando muito estranho que alguém tenha uma geladeira com menos de 25 queijos diferentes. Todos os tipos e marcas. É praticamente uma seção de supermercado. E é isso que ela estava fazendo nesse momento. Se aventurando pelos queijos, claro. Ela pequenininha, praticamente entrava naquela geladeira gigantesca. Era uma cena engraçada, de verdade. E tudo isso ainda com a garrafa na mão, claro.
- Maria Lúcia, qual era aquele queijo que eu gostava mesmo?
- Mãe, devem ter no mínimo uns 17 queijos que são o “queijo que você gosta”. De verdade.
- Aquele que é cremosinho, Maria Lúcia. Que eu comi ontem à noite.
- Ah, você quer dizer “cream cheese”. A marca é philadelphia, eu acho. Cheio de pêagás.
- Ah, é. Era esse mesmo. Acho que vou comer um Gouda.
Enquanto minha mãe começou a preparar seu sanduíche, percebi que estava lavando o mesmo copo a pelo menos uns 7 minutos. Acabei de lavar a louça, ai ai. De verdade. Felizmente eu também gostava bastante da próxima parte. Secar e organizar. Por sorte isso ia me manter calma por mais alguns minutos. Fui colocar o copo no escorredor e encarei e a menininha confusa refletida no copo, a mesma de antes. Já estava fugindo dela há algum tempo. Encarei de verdade dessa vez. E com um profundo suspiro peguei o pano e comecei a secar a louça. Os pratos primeiro, claro. Sempre são os pratos primeiro.
- Mãe...
- O que foi agora Maria Lúcia?
Eu realmente não devia perguntar para a minha mãe. Essa exata mãe que todos tiveram o prazer de conhecer agora a pouco. Mas eu não me contive, de verdade. Não me contive.
- Mãe, como foi quando eu nasci?
- Como assim?
- Quando você ficou grávida de mim. A barriga, os enjoos, a expectativa e tudo mais. Móbiles e berços, sei lá. Como foi todo o processo?
- Ah Maria Lúcia, quer mesmo saber disso? Foi horrível! Simplesmente horrível sabia? Dores, desconforto, sentimentos totalmente fora de contexto. E essa é só a parte física. Há! Sem falar de todo o social. Engravidar com 17 anos não é nada fácil filhota. Seu pai estava muito ocupado com a banda dele, e por Deus, como era ruim aquela banda. Sem brincadeira Maria Lúcia, era ridícula. Como era o nome daquilo mesmo?
- Eu não sei mãe. De verdade. Nem sabia que ele tinha uma banda.
- Há! Bom, era alguma referência ridícula a algum monstro, ou super herói. Acho que era algo com aquele videogame do Mario na verdade. Mario Maria Lúcia! Eu grávida e o seu pai ficava o dia todo jogando videogames ou trabalhando naquela merda de banda. Eram os anos 80 também, que década bem perdida. Olho pra trás e vejo que absolutamente nada fazia sentido. Das roupas às bandas, tudo.
- E apesar de tudo isso, você conseguiu levar a vida numa boa?
- Tirando o fato que eu desisti de todas as minhas esperanças e os meus sonhos, acho que sim. Uma criança, Maria Lúcia, traz muita responsabilidade. Você começa a pensar de um jeito diferente. Os seus sonhos praticamente se transferem pra criança.
Isso doeu, de verdade. Senti uma angústia terrível e fui ficando mais e mais nervosa e agitada. Era hora de secar os talheres. Isso deve funcionar, claro. Adoro talheres.
- E quais eram os seus sonhos mãe? Nunca nem pensei nisso.
- Ah Maria Lúcia, eu queria ser uma aeromoça. Sempre quis ser uma aeromoça. Voar pelo mundo, conhecendo tudo e aproveitando. Voar por ai, me deixar levar.
- O que era completamente impossível tendo um bebê para criar não é?
- Impossível... Mas tudo bem Maria Lúcia. Tudo bem. A vida te entrega outras coisas. E eu sou jovem ainda.
- É, claro. Mas não deve ter sido fácil. De verdade.
Terminei de secar a louça me sentindo muito perdida, de verdade. Pela primeira vez desde os 11 anos de idade (quando eu estava com muita pressa para ir a um show dos “Backstreet Boys”. Exatamente. Dos “Backstreet Boys”) eu não queria organizar a louça. Não tinha a menor vontade. Estava muito agoniada. E isso me assustava, de verdade.
- Mãe, eu acho que eu vou dar uma saída.
Fui rapidamente me deslocando da cozinha, agoniada mesmo. Afinal esse era o meu lugar de paz, de sossego. Mas precisava sair dali, rápido. Os reflexos estavam acabando comigo. Meu próprio reflexo.
- Não vai organizar a louça Maria Lúcia?
- Ah, na volta. De verdade. Faço isso na volta.
ELE.
Então eu estou aqui de novo no meu velho e desarrumado quarto. Realmente não sei como ele consegue ficar tão sujo cara. Tenho certeza que eu dei uma arrumada nisso aqui há umas duas semanas. E agora já é a mesma confusão de sempre, a mesma coisa. Não pode ser que eu sozinho faça tudo isso! Putz, não tem como cara. Tem meias de pares diferentes até em cima do ventilador. Quando que eu jogo meias no ventilador? A última vez foi com treze anos e olhe lá. E tem no mínimo 7 copos espalhados por lugares diversos do quarto. Porque eu faria isso cara? O problema (e talvez a solução) é que eu gosto de tudo isso. Realmente gosto cara. Esse é o meu lugar de paz, o meu canto de reflexão. Considero o meu quarto, por mais caótico que seja, um monastério portátil dentro da minha própria casa. Mesmo não encontrando as minhas próprias coisas, se eu encontrar a minha viola e a minha cama eu não preciso de mais nada cara. É a minha terapia.
E é isso que eu estou fazendo agora. A mesma coisa que faço por muito tempo, praticamente todos os dias. Sentado na minha cama, com a minha viola (A Betsy) e vários papéis na volta. Tentando compor algo que preste poxa! Cara, como eu disse, é sempre a mesma coisa. Todos os dias tentando compor, tentando compor e nada! Não consigo nem uma letra, nem uma melodia que preste. Estou ficando cada vez mais desesperado com isso cara! Eu vivo com a simples esperança de ter algum talento musical, mais nada! Se eu não tiver talento, se eu não tiver. Ah cara, não sei o que eu faço. Preciso de tempo, preciso de inspiração, preciso de algo mais, poxa. Não quero virar um cara conformado com a vida em um empreguinho estável qualquer cara! Quero mostrar ao mundo o que eu tenho, sei que eu tenho alguma coisa, devo ter não é? Já bastante nervoso comecei a tentar me acalmar, tocando a velha Betsy. Uma melodia que sempre toco quando estou nervoso, sempre. A primeira música que meu pai me ensinou, primeira música que eu aprendi a tocar. Eu tinha uns 9 anos de idade. De autoria dele. Isso sempre me acalma cara, sempre. Então, bateram na porta.
- Quem é?
Ela abriu a porta de certo modo bruscamente, mas de um jeito que só ela sabia fazer. Ao mesmo tempo em que tinha muita força e vontade, era algo bastante delicado e gentil. Era algo só dela cara. E ela sempre abria assim. Sempre.
- Sou eu.
- Pode entrar.
Eu disse, embora ela já estivesse dentro mesmo. A Maria Lúcia era sempre assim, sempre. O jeito que ela age comigo é exatamente o jeito que ela abre a porta. É uma perfeita metáfora cara. Ela é muito autoritária, tem muita força. Sério. Mas ela é muito gentil e delicada. Eu gosto muito desse jeito dela cara. Só ela sabe ser assim. Simplesmente ser ela mesma.
- O quarto imundo como sempre hein Durval?
- Sabe como é. Eu fico ocupado com a minha arte e tal.
- Eu realmente não entendo como eu consigo ficar nesse quarto. De verdade, não entendo. Qualquer outro lugar tão desorganizado ia me fazer desmaiar, no mínimo.
Ela sempre foi assim cara, maior aficionada por limpeza que eu já vi na minha vida, sério. Sempre tão perfeccionista e organizada. Louca pelos detalhes. Mesmo a conhecendo a milhares de anos, ainda custo a acreditar que a atividade predileta dela é lavar a louça cara! Ela está certa. Não sei como ela aguenta esse lugar a tanto tempo. Ela é incrível mesmo.
- Acho que é costume, provavelmente.
Ela sentou quase que se jogando na cama e começou a mexer nos meus papéis. Mas é claro que ela não podia deixar de ir organizando tudo que estava ao seu alcance, sério. Pensando bem, aquela arrumação do quarto a duas semanas, acho que foi ela. Provavelmente. Que bom que ela ainda não viu as meias no ventilador.
- O que você está fazendo? Tocando a Beth de novo?
- Betsy, você sabe que é Betsy.
- Às vezes acho que você gosta mais desse violão do que de mim. De verdade.
- Ah Malu, você é a minha melhor amiga cara. Mas a Betsy é minha companheira de trabalho, e o trabalho é a minha vida.
Ela me olhou diretamente nos olhos com assustadora sinceridade. Eu queria prestar atenção nela, ou até na letra que eu (acho) estou quase compondo, mas por alguma razão eu não conseguia tirar as meias no ventilador da cabeça. Sério, não conseguia cara. Não queria que ela visse. Olhei de volta para os seus olhos e acho que vi uma pequena lágrima caindo do seu olho esquerdo, quase certeza disso. Cara, isso me deixou muito triste. Eu gosto tanto dela.
- Tudo bem. De verdade. Eu sei o quanto você gosta dessas coisas.
Agora ela, como sempre, começou a perambular pelo quarto organizando tudo. Não havia como impedi-la, sério. Nada ia pará-la agora. Só podia realmente torcer para ela não ver aquelas meias no ventilador. Não veja as meias, não veja as meias.
- Porque você tem 30 copos diferentes nesse quarto Durval? De verdade, eu não consigo entender isso. Você quase não bebe nada.
Ufa, antes os copos do que as meias. Ela parece tão angustiada, não quero que ela fique mais ainda. Sério.
- Acho que era pro meu gato. Ou algo do tipo.
- Desde quando você tem um gato?
- Acho que eu tinha.
Então ela olhou pra cima, ai ai.
- Durval! Tem meias em cima do ventilador! Como você conseguiu uma façanha dessas? Ah, às vezes eu nem acredito. De verdade Durval.
- Ah, mas são meias sem par, Malu.
Então ela simplesmente (assim do nada) começou a chorar e a chorar e a chorar. Desabou em choro. E eu realmente não sabia o que fazer! Estava completamente perdido! Não quero que ela fique triste. Logo ela e por minha causa ainda. Não ela. Não chora Malu. O que houve? Ela sentou em um canto do quarto e ficou engolindo o choro. De partir o coração.
- Eu, eu, to me sentindo tão mal, Durval. Tão mal! Completamente perdida, completamente. Eu sei que você também tá bem perdido, mas eu preciso conversar com alguém poxa! De verdade.
Ela realmente me conhece. Como ela é boazinha, conseguiu lembrar que eu realmente não tenho jeito pra essas coisas, como, me encontrar. Mesmo ela estando tão mal, cara. Ela é ótima. Levantei da cama e me sentei ao seu lado. O mínimo que eu podia fazer.
- Pode falar.
- Ah Durval, é que eu ando me sentindo tão angustiada. Tão pesada. Me sinto pesadona, como um besourão.
Eu só conseguia pensar o quanto ela era leve pra mim. Quanto ela era graciosa. Ela deslizava pela minha vida daquele jeitinho dela, sempre. Queria dizer o que eu achava de verdade. Que ela voava leve com um besourinho. Que ela era a coisa mais importante pra mim. Não sei como ela me agüenta tanto cara, de verdade. Eu tenho essa sensação de que as pessoas que eu mais gosto tem preguiça de mim. Mas ela, ela sempre está ali.
- Ah, Porque um besouro? É um bicho tão pequenininho.
- Durval, não importa o bicho, Durval. Era só uma metáfora, sei lá. Você...? Lembra daquela vez?
- Que vez?
- Aquela, uns dois meses atrás. Aquele nosso grande engano. Não lembra Durval?
Esse engano tinha sido simplesmente a melhor noite da minha vida, cara, sério. Ela esteve comigo, depois de tantos anos. Pude pelo menos tentar expressar o que eu sentia, corporalmente. Já que sempre me faltam as palavras, sempre cara. Como eu vou conseguir escrever uma música assim? Devia desistir de tudo mesmo.
- Ah, lembro, claro.
Ela começou a chorar de novo, ai ai. Chorar e chorar. Não chora Malu. Nada dói mais do que te ver chorando assim. Mostra esse teu sorriso tão bonito.
- É, Durval, eu acho que... Eu acho que eu estou grávida.
Ela falou a última palavra tão baixinho que eu realmente não consegui ouvir, sério. Fiquei preocupado.
- Está o que?
- Grávida Durval! Grávida! Vamos ter um filho! Um bebezinho! Fraldas, talcos, berços, papinhas, noites sem dormir, todo o pacote! E os nossos sonhos? Acabaram Durval, acabaram. De verdade. Comece a se preparar, vamos ter que colocar todo a nossa pesada carga emocional em cima desse nosso filho.
Talvez eu devesse pensar em milhões de coisas. Realmente me preocupar, realmente. Pintar todo um futuro atribulado, imaginar como a minha vida ia ser complicada daqui para frente. Fiquei chocado cara, isso eu não posso esconder. E até que pensei no meu futuro sim, mas só de pensar que ela estaria lá, eu já me sentia bem. Ela estaria em todos os meus momentos futuros. Teria ainda muitas oportunidades para ver o sorriso da Maria Lúcia. E poder provocá-lo. Só consegui ficar feliz, preocupado claro, mas feliz.
- E você está bem?
- Não Durval! Não muito! Eu to preocupada, nervosa, aflita, angustiada e grávida ainda por cima! Eu to muito, muito perdida Durval. Não sei o que fazer, eu não sei. De verdade. O que você acha de tudo isso Durval?
Então talvez pela primeira vez na vida, me vieram as palavras. Lembrei de uma coisa que na verdade eu nunca havia esquecido. Realmente nunca havia esquecido.
- Lembra, lembra de quando nós éramos bem pequenos? A gente tinha se conhecido a muito pouco tempo e acabamos indo juntos a um parquinho de diversões. Nossos pais nos levaram ou algo assim, era um lugar aqui perto, fomos todos caminhando mesmo. Não sei se você vai lembrar.
- Acho que eu lembro sim.
- Toda caminhada até lá você nem falava comigo. Me ignorava, tinha uma personalidade muito forte. Tem até hoje na verdade, mas também sabe ser muito doce. Como na primeira vez em que você realmente permitiu que eu entrasse na tua vida, lembra disso?
- Talvez.
- Você foi correndo até aqueles carrinhos que ficam batendo uns nos outros, sabe aquilo? Que você entra, fica dirigindo e tem que bater nos outros carrinhos? Você adorava aquilo, e eu também claro. Você entrou no último carrinho vago, e eu não ia poder andar. Aí, mesmo com todo aquele seu orgulho infantil, você me chamou pra andar no carrinho com você. Lembra disso? Mesmo com todo o seu perfeccionismo, tudo tendo sempre que estar do seu jeito. Desde aquela época isso. Mas você me convidou ali, pro seu mundo. Lembra?
- Sim.
Ela sorriu em meio às lágrimas. Um sorriso muito sincero, sério. Era um sorriso da Maria Lúcia. Era o sorriso dela.
- Então, eu nunca saí daquele carrinho. Estou lá dentro com você até hoje. E não quero sair tão cedo cara. É simplesmente muito divertido.
Sinceramente cara, ta muito bom.
ResponderExcluirGostei muuuuito, cara! Os personagens ficaram, ótimos, realmente muito marcantes. Gostei que a Maria Lúcia e o Durval tem seus vícios linguisticos haha de verdade, sério, cara.
ResponderExcluirFoi uma leitura bem gostosa! Depois que comecei tive que ir até o final! Final esse que pega de surpresa, de verdade. Haha ficou uma sensação de inacabado, mas eu sei que está bem consistente.
Só farei uma correção, de todos os trocentos vocativos no texto você só separou com vírgula um... heuehuehe Tirando isso está impecável, parabéns!
Own, realmente gostei Raoni! Gostei demais dela, e um outro vício que o Thiago deixou escapar, o vício que eles dois tem; sempre.
ResponderExcluir"obrigada por compartilhar" hehehe =*
ResponderExcluirCara, lindo, de verdade, lindo. Não tenho outra palavra além de lindo!
ResponderExcluirE com certeza ela é virginiana e ele de áries, hahaha...