sábado, 19 de junho de 2010

Em verdadeiro cansaço
Sinto teu gosto
Pétalas de mel
Secando velhos rostos
Unindo meus destroços
Parte amena do que volto a ser
Completo
Agora, quando podes ver.
Vejo-te ali
Contrário ao perto
Cercando barcos livres
Que navegam presos
Nadando em sonhos reais
Que descansam menos
Se te tenho aqui
Quando convém a ti
Deixo-te ir, vir
Não querendo a mim
Confundindo a si.

terça-feira, 15 de junho de 2010

As pessoas que mais gosto tem preguiça de mim

ELA.

Então começou de novo o meu cansativo ritual da cozinha, o processo se repetia como todas às vezes. Eu realmente deveria começar a ir menos até a cozinha, sabendo que este simples ato cotidiano implica nesse tremendo cansaço mental. De verdade. Mas o que eu posso fazer? Tenho que comer também né? O problema não é o lugar em si, eu gosto de cozinhas. Elas são (geralmente) muito limpas, brancas e cheias de utensílios que ninguém sabe pra que servem.  Acho que esse que é o problema. Pensem bem, até a menor das cozinhas é um grande oásis de organização dentro da mais suja das casas. Bom, acho que se alguém não lavar a louça e deixar as coisas fora do lugar isso ia ser quebrado, mas eu gosto de acreditar que todos cuidam das suas cozinhas. Eu faço o máximo pra cuidar da minha (que é bem grande), organizando gavetas, armários, potes e panelas. Milhares de pequenas coisas para me entreter. Resumindo, a cozinha é um lugar muito cheio de detalhes pra uma mente perigosamente minuciosa como a minha. De verdade, eu me perco nos detalhes. Vou para o meu mundo. Esse é o meu lugar de paz. Considero um parque de diversões portátil dentro da minha casa, sério. E ainda posso comer de graça nela.

Fui lavando a louça, que é minha atividade preferida dentro da cozinha. De longe. Não há nada melhor do que lavar a louça. Fui realmente aproveitando, olhando a água escorrendo e reparando nas pontas gordinhas das colheres e nas patinhas metálicas dos garfos. Percebi como são parecidos, mas cada um com o seu propósito dentro da cozinha, e em uma refeição. Acho que talheres sempre são ótimos para metáforas. Desde que eu me entendo por gente, vejo a vida como uma “antropomorfização” da cozinha em geral. Poeticamente falando, se me permitem, vejo a vida no reflexo de uma colher reluzente. Por mais deprimente que isso seja. Eu sei, é um pouco deprimente. Bom e Isso tudo acontece sempre que eu lavo a louça. Perco-me pensando se garfos são uma simples evolução das colheres, ou o contrário. Parece coisa de gente maluca, eu sei. Mas hoje especificamente, eu estou muito nervosa. Muito mesmo. Nem consigo lavar a louça direito. Preciso desse meu momento com os garfos. Realmente preciso.

- Lavando a louça de novo minha filha?

Minha mãe. Certamente uma pessoinha muito difícil de conviver. Chegou (como de praxe) correndo pelo chão xadrez impecavelmente limpo da cozinha só para me criticar. Com esse simples propósito. Minha mãe vive para me criticar. Lá estava ela, como que apontando “uma arma de julgar” diretamente na minha cabeça, vestida com o seu figurino de sempre. Umas pantufas de bichinho muito velhas (que já não dava mais pra identificar qual bicho que era, mas eu tenho quase certeza que era o Scooby Doo, há 15 anos claro); A sua “roupa de andar em casa” (que na verdade ela usava em todos os lugares, sério) que é nada mais nada menos que um roupão. Um roupão velho e encardido que mais parecia um quimono de vez em quando; e é claro, o último item indispensável para a minha mãe, uma garrafa de alguma coisa alcoólica na mão (Hoje era uma tequila, eu acho, não sou a maior conhecedora dessas coisas). E essa é a minha mãe.

- Ah mãe, me deixa em paz um pouquinho. Esse é o meu momento, você sabe disso.

- Quantas vezes você já lavou a louça só hoje? No mínima umas cinco, menina! Cinco. Nós nem usamos tanta louça aqui nesta casa.

- Essa é no máximo a terceira vez mãe. Me deixa em paz com isso um pouquinho. Você sabe que pra mim é muito relaxante. Você sabe disso mãe.

Agora comecei a esfregar os pratos com muita vontade. Realmente ensaboando aqueles discos brancos, ensaboava como se a minha vida dependesse disso. De verdade. E enquanto esfregava, só me restava encarar a imagem de uma menina nervosa e confusa refletindo no prato. Olhos tristes escorrendo o que pareciam ser lágrimas, mas não eram. Era somente o sabão escorrendo pelo prato. As lágrimas também estavam ali. Eu sei que estavam. Isso me preocupava. Pensava no bem-estar dela. Continuava ensaboando.

- Como lavar a louça pode ser relaxante? Chegou num ponto que você me deprime. Sabia disso Maria Lúcia? Você me deprime. Nada mais do que isso.

Então ela virou a garrafa subitamente, despejando a tal bebida pela garganta com prazer. Minha mãe precisava disso tanto quanto eu precisava da louça eu acho, ou da cozinha. Por um segundo a garrafa também pôde refletir o rosto da mesma menina triste. Fiquei um pouco mais inquieta depois disso. Já estava bem confusa.

- Mãe, eu preciso disso. É uma terapia pra mim. Eu não tenho ninguém pra realmente conversar, alguém pra ouvir os meus problemas com atenção. Sei lá. Talvez eu devesse ir a um psicólogo ou algo assim. Ando me sentindo meio perdida.

-Psicólogo? Pra quê pagar psicólogo? Só pra você falar mal de mim? Como assim não tem ninguém pra conversar? E os seus amigos? E aquele teu namoradinho?

- Quem? O Durval?

- Esse é aquele que não para de mascar palitos de dente nunca? Não suporto aquele garoto. Ele sempre cheira a Hipoglós, não imagino porque razão.  Não sei por que você sai com esse menino Maria Lúcia.

- Não, não mãe! Esse é o Afonso, ele veio uma vez aqui em casa e só ficou por 10 minutos. Também não gosto muito dele não. O Durval mãe, meu amigo desde os 5 anos de idade mais ou menos. Baixinho, barbudo.

- Ah, melhorou um pouco. É aquele que sempre anda com um bloquinho ou algo assim?

- É! Então, ele não é meu namorado, mãe! Como você não sabe disso?

- Bom, tanto faz. Não pode conversar com ele em vez de querer gastar o meu dinheiro?

Cheguei aos copos agora. Eu gosto muito dessa parte. Parece que copos foram feitos para serem lavados. Eles encaixam perfeitamente com o contexto da limpeza. Perco horas e horas só passando a esponja pelas suas curvas e botando água. Eu acho incrível como alguém não se diverte com isso! Vocês (mundo) realmente não gostam de lavar a louça? Sério isso? Tudo bem então, sobra mais pra mim eu acho. Fiquei realmente mais tranquila pensando sobre os copos, mas então me lembrei da pergunta da minha mãe.

- Não pode conversar com ele Maria Lúcia?

- Não mãezinha! Não posso conversar com ele! Ele é ainda mais perdido do que eu, poxa. De verdade. Não ia ajudar em nada. Ele não sabe nem chegar à própria casa direito.

- Bom, continue com os seus problemas Maria Lúcia. Eu vou de fato resolver alguma coisa.

Então minha mãe foi “resolver alguma coisa”. O que pra mim pode parecer muito pouco, pra ela talvez realmente seja resolver algo. Ela foi fazer um sanduíche. De verdade. E não foi fazer um fantástico super sanduíche, não, não. Ela come vários sanduíches com queijo. Só queijo, é sério. Cresci achando muito estranho que alguém tenha uma geladeira com menos de 25 queijos diferentes. Todos os tipos e marcas. É praticamente uma seção de supermercado. E é isso que ela estava fazendo nesse momento. Se aventurando pelos queijos, claro. Ela pequenininha, praticamente entrava naquela geladeira gigantesca. Era uma cena engraçada, de verdade. E tudo isso ainda com a garrafa na mão, claro.

- Maria Lúcia, qual era aquele queijo que eu gostava mesmo?

- Mãe, devem ter no mínimo uns 17 queijos que são o “queijo que você gosta”. De verdade.

- Aquele que é cremosinho, Maria Lúcia. Que eu comi ontem à noite.

- Ah, você quer dizer “cream cheese”. A marca é philadelphia, eu acho. Cheio de pêagás.

- Ah, é. Era esse mesmo. Acho que vou comer um Gouda.

Enquanto minha mãe começou a preparar seu sanduíche, percebi que estava lavando o mesmo copo a pelo menos uns 7 minutos. Acabei de lavar a louça, ai ai. De verdade. Felizmente eu também gostava bastante da próxima parte. Secar e organizar. Por sorte isso ia me manter calma por mais alguns minutos. Fui colocar o copo no escorredor e encarei e a menininha confusa refletida no copo, a mesma de antes. Já estava fugindo dela há algum tempo. Encarei de verdade dessa vez.  E com um profundo suspiro peguei o pano e comecei a secar a louça. Os pratos primeiro, claro. Sempre são os pratos primeiro.

- Mãe...

- O que foi agora Maria Lúcia?

Eu realmente não devia perguntar para a minha mãe. Essa exata mãe que todos tiveram o prazer de conhecer agora a pouco. Mas eu não me contive, de verdade. Não me contive.

- Mãe, como foi quando eu nasci?

- Como assim?

- Quando você ficou grávida de mim. A barriga, os enjoos, a expectativa e tudo mais. Móbiles e berços, sei lá. Como foi todo o processo?

- Ah Maria Lúcia, quer mesmo saber disso? Foi horrível! Simplesmente horrível sabia? Dores, desconforto, sentimentos totalmente fora de contexto. E essa é só a parte física. Há! Sem falar de todo o social. Engravidar com 17 anos não é nada fácil filhota. Seu pai estava muito ocupado com a banda dele, e por Deus, como era ruim aquela banda. Sem brincadeira Maria Lúcia, era ridícula. Como era o nome daquilo mesmo?

- Eu não sei mãe. De verdade. Nem sabia que ele tinha uma banda.

- Há! Bom, era alguma referência ridícula a algum monstro, ou super herói. Acho que era algo com aquele videogame do Mario na verdade. Mario Maria Lúcia! Eu grávida e o seu pai ficava o dia todo jogando videogames ou trabalhando naquela merda de banda. Eram os anos 80 também, que década bem perdida. Olho pra trás e vejo que absolutamente nada fazia sentido. Das roupas às bandas, tudo.

- E apesar de tudo isso, você conseguiu levar a vida numa boa?

- Tirando o fato que eu desisti de todas as minhas esperanças e os meus sonhos, acho que sim. Uma criança, Maria Lúcia, traz muita responsabilidade. Você começa a pensar de um jeito diferente. Os seus sonhos praticamente se transferem pra criança.

Isso doeu, de verdade. Senti uma angústia terrível e fui ficando mais e mais nervosa e agitada. Era hora de secar os talheres. Isso deve funcionar, claro. Adoro talheres.

- E quais eram os seus sonhos mãe? Nunca nem pensei nisso.

- Ah Maria Lúcia, eu queria ser uma aeromoça. Sempre quis ser uma aeromoça.  Voar pelo mundo, conhecendo tudo e aproveitando. Voar por ai, me deixar levar.

- O que era completamente impossível tendo um bebê para criar não é?

- Impossível... Mas tudo bem Maria Lúcia.  Tudo bem. A vida te entrega outras coisas. E eu sou jovem ainda.

- É, claro. Mas não deve ter sido fácil. De verdade.

Terminei de secar a louça me sentindo muito perdida, de verdade. Pela primeira vez desde os 11 anos de idade (quando eu estava com muita pressa para ir a um show dos “Backstreet Boys”. Exatamente. Dos “Backstreet Boys”) eu não queria organizar a louça. Não tinha a menor vontade. Estava muito agoniada. E isso me assustava, de verdade.

- Mãe, eu acho que eu vou dar uma saída.

Fui rapidamente me deslocando da cozinha, agoniada mesmo. Afinal esse era o meu lugar de paz, de sossego. Mas precisava sair dali, rápido. Os reflexos estavam acabando comigo. Meu próprio reflexo.

- Não vai organizar a louça Maria Lúcia?

- Ah, na volta. De verdade. Faço isso na volta.

ELE.

Então eu estou aqui de novo no meu velho e desarrumado quarto. Realmente não sei como ele consegue ficar tão sujo cara. Tenho certeza que eu dei uma arrumada nisso aqui há umas duas semanas. E agora já é a mesma confusão de sempre, a mesma coisa. Não pode ser que eu sozinho faça tudo isso! Putz, não tem como cara. Tem meias de pares diferentes até em cima do ventilador. Quando que eu jogo meias no ventilador? A última vez foi com treze anos e olhe lá. E tem no mínimo 7 copos espalhados por lugares diversos do quarto. Porque eu faria isso cara? O problema (e talvez a solução) é que eu gosto de tudo isso. Realmente gosto cara. Esse é o meu lugar de paz, o meu canto de reflexão. Considero o meu quarto, por mais caótico que seja, um monastério portátil dentro da minha própria casa. Mesmo não encontrando as minhas próprias coisas, se eu encontrar a minha viola e a minha cama eu não preciso de mais nada cara. É a minha terapia.

E é isso que eu estou fazendo agora. A mesma coisa que faço por muito tempo, praticamente todos os dias. Sentado na minha cama, com a minha viola (A Betsy) e vários papéis na volta. Tentando compor algo que preste poxa! Cara, como eu disse, é sempre a mesma coisa. Todos os dias tentando compor, tentando compor e nada! Não consigo nem uma letra, nem uma melodia que preste. Estou ficando cada vez mais desesperado com isso cara! Eu vivo com a simples esperança de ter algum talento musical, mais nada! Se eu não tiver talento, se eu não tiver. Ah cara, não sei o que eu faço. Preciso de tempo, preciso de inspiração, preciso de algo mais, poxa. Não quero virar um cara conformado com a vida em um empreguinho estável qualquer cara! Quero mostrar ao mundo o que eu tenho, sei que eu tenho alguma coisa, devo ter não é?  Já bastante nervoso comecei a tentar me acalmar, tocando a velha Betsy. Uma melodia que sempre toco quando estou nervoso, sempre. A primeira música que meu pai me ensinou, primeira música que eu aprendi a tocar. Eu tinha uns 9 anos de idade. De autoria dele.  Isso sempre me acalma cara, sempre. Então, bateram na porta.

- Quem é?

Ela abriu a porta de certo modo bruscamente, mas de um jeito que só ela sabia fazer. Ao mesmo tempo em que tinha muita força e vontade, era algo bastante delicado e gentil. Era algo só dela cara. E ela sempre abria assim. Sempre.

- Sou eu.

- Pode entrar.

Eu disse, embora ela já estivesse dentro mesmo. A Maria Lúcia era sempre assim, sempre. O jeito que ela age comigo é exatamente o jeito que ela abre a porta. É uma perfeita metáfora cara. Ela é muito autoritária, tem muita força. Sério. Mas ela é muito gentil e delicada. Eu gosto muito desse jeito dela cara. Só ela sabe ser assim. Simplesmente ser ela mesma.

- O quarto imundo como sempre hein Durval?

- Sabe como é. Eu fico ocupado com a minha arte e tal.

- Eu realmente não entendo como eu consigo ficar nesse quarto. De verdade, não entendo. Qualquer outro lugar tão desorganizado ia me fazer desmaiar, no mínimo.

Ela sempre foi assim cara, maior aficionada por limpeza que eu já vi na minha vida, sério. Sempre tão perfeccionista e organizada. Louca pelos detalhes. Mesmo a conhecendo a milhares de anos, ainda custo a acreditar que a atividade predileta dela é lavar a louça cara! Ela está certa. Não sei como ela aguenta esse lugar a tanto tempo. Ela é incrível mesmo.

- Acho que é costume, provavelmente.

Ela sentou quase que se jogando na cama e começou a mexer nos meus papéis. Mas é claro que ela não podia deixar de ir organizando tudo que estava ao seu alcance, sério. Pensando bem, aquela arrumação do quarto a duas semanas, acho que foi ela. Provavelmente. Que bom que ela ainda não viu as meias no ventilador.

- O que você está fazendo? Tocando a Beth de novo?

- Betsy, você sabe que é Betsy.

- Às vezes acho que você gosta mais desse violão do que de mim. De verdade.

- Ah Malu, você é a minha melhor amiga cara. Mas a Betsy é minha companheira de trabalho, e o trabalho é a minha vida.

Ela me olhou diretamente nos olhos com assustadora sinceridade. Eu queria prestar atenção nela, ou até na letra que eu (acho) estou quase compondo, mas por alguma razão eu não conseguia tirar as meias no ventilador da cabeça. Sério, não conseguia cara. Não queria que ela visse. Olhei de volta para os seus olhos e acho que vi uma pequena lágrima caindo do seu  olho esquerdo, quase certeza disso. Cara, isso me deixou muito triste. Eu gosto tanto dela.

- Tudo bem. De verdade. Eu sei o quanto você gosta dessas coisas.

Agora ela, como sempre, começou a perambular pelo quarto organizando tudo. Não havia como impedi-la, sério. Nada ia pará-la agora. Só podia realmente torcer para ela não ver aquelas meias no ventilador. Não veja as meias, não veja as meias.

- Porque você tem 30 copos diferentes nesse quarto Durval? De verdade, eu não consigo entender isso. Você quase não bebe nada.

Ufa, antes os copos do que as meias. Ela parece tão angustiada, não quero que ela fique mais ainda. Sério.

- Acho que era pro meu gato. Ou algo do tipo.

- Desde quando você tem um gato?

- Acho que eu tinha.

Então ela olhou pra cima, ai ai.

- Durval! Tem meias em cima do ventilador! Como você conseguiu uma façanha dessas? Ah, às vezes eu nem acredito. De verdade Durval.

- Ah, mas são meias sem par, Malu.

Então ela simplesmente (assim do nada) começou a chorar e a chorar e a chorar. Desabou em choro. E eu realmente não sabia o que fazer! Estava completamente perdido! Não quero que ela fique triste. Logo ela e por minha causa ainda. Não ela. Não chora Malu. O que houve? Ela sentou em um canto do quarto e ficou engolindo o choro. De partir o coração.

- Eu, eu, to me sentindo tão mal, Durval. Tão mal! Completamente perdida, completamente. Eu sei que você também tá bem perdido, mas eu preciso conversar com alguém poxa! De verdade.

Ela realmente me conhece. Como ela é boazinha, conseguiu lembrar que eu realmente não tenho jeito pra essas coisas, como, me encontrar. Mesmo ela estando tão mal, cara. Ela é ótima. Levantei da cama e me sentei ao seu lado. O mínimo que eu podia fazer.

- Pode falar.

- Ah Durval, é que eu ando me sentindo tão angustiada. Tão pesada. Me sinto pesadona, como um besourão.

Eu só conseguia pensar o quanto ela era leve pra mim. Quanto ela era graciosa. Ela deslizava pela minha vida daquele jeitinho dela, sempre. Queria dizer o que eu achava de verdade.  Que ela voava leve com um besourinho. Que ela era a coisa mais importante pra mim. Não sei como ela me agüenta tanto cara, de verdade. Eu tenho essa sensação de que as pessoas que eu mais gosto tem preguiça de mim. Mas ela, ela sempre está ali.

- Ah, Porque um besouro? É um bicho tão pequenininho.

- Durval, não importa o bicho, Durval. Era só uma metáfora, sei lá. Você...? Lembra daquela vez?

- Que vez?

- Aquela, uns dois meses atrás. Aquele nosso grande engano. Não lembra Durval?

Esse engano tinha sido simplesmente a melhor noite da minha vida, cara, sério. Ela esteve comigo, depois de tantos anos. Pude pelo menos tentar expressar o que eu sentia, corporalmente. Já que sempre me faltam as palavras, sempre cara. Como eu vou conseguir escrever uma música assim? Devia desistir de tudo mesmo.

- Ah, lembro, claro.

Ela começou a chorar de novo, ai ai. Chorar e chorar. Não chora Malu. Nada dói mais do que te ver chorando assim. Mostra esse teu sorriso tão bonito.

- É, Durval, eu acho que... Eu acho que eu estou grávida.

Ela falou a última palavra tão baixinho que eu realmente não consegui ouvir, sério. Fiquei preocupado.

- Está o que?

- Grávida Durval! Grávida! Vamos ter um filho! Um bebezinho! Fraldas, talcos, berços, papinhas, noites sem dormir, todo o pacote! E os nossos sonhos? Acabaram Durval, acabaram. De verdade. Comece a se preparar, vamos ter que colocar todo a nossa pesada carga emocional em cima desse nosso filho.

Talvez eu devesse pensar em milhões de coisas. Realmente me preocupar, realmente. Pintar todo um futuro atribulado, imaginar como a minha vida ia ser complicada daqui para frente. Fiquei chocado cara, isso eu não posso esconder. E até que pensei no meu futuro sim, mas só de pensar que ela estaria lá, eu já me sentia bem. Ela estaria em todos os meus momentos futuros. Teria ainda muitas oportunidades para ver o sorriso da Maria Lúcia. E poder provocá-lo. Só consegui ficar feliz, preocupado claro, mas feliz.

- E você está bem?

- Não Durval! Não muito! Eu to preocupada, nervosa, aflita, angustiada e grávida ainda por cima! Eu to muito, muito perdida Durval. Não sei o que fazer, eu não sei. De verdade. O que você acha de tudo isso Durval?

Então talvez pela primeira vez na vida, me vieram as palavras. Lembrei de uma coisa que na verdade eu nunca havia esquecido. Realmente nunca havia esquecido.

- Lembra, lembra de quando nós éramos bem pequenos? A gente tinha se conhecido a muito pouco tempo e acabamos indo juntos a um parquinho de diversões. Nossos pais nos levaram ou algo assim, era um lugar aqui perto, fomos todos caminhando mesmo. Não sei se você vai lembrar.

- Acho que eu lembro sim.

- Toda caminhada até lá você nem falava comigo. Me ignorava, tinha uma personalidade muito forte. Tem até hoje na verdade, mas também sabe ser muito doce. Como na primeira vez em que você realmente permitiu que eu entrasse na tua vida, lembra disso?

- Talvez.

- Você foi correndo até aqueles carrinhos que ficam batendo uns nos outros, sabe aquilo? Que você entra, fica dirigindo e tem que bater nos outros carrinhos? Você adorava aquilo, e eu também claro. Você entrou no último carrinho vago, e eu não ia poder andar. Aí, mesmo com todo aquele seu orgulho infantil, você me chamou pra andar no carrinho com você. Lembra disso? Mesmo com todo o seu perfeccionismo, tudo tendo sempre que estar do seu jeito. Desde aquela época isso. Mas você me convidou ali, pro seu mundo. Lembra?

- Sim.

Ela sorriu em meio às lágrimas. Um sorriso muito sincero, sério. Era um sorriso da Maria Lúcia. Era o sorriso dela.

- Então, eu nunca saí daquele carrinho. Estou lá dentro com você até hoje. E não quero sair tão cedo cara. É simplesmente muito divertido.

- De verdade? 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Neste belo elo
Objeto que está por vir
Verei linda agonia
Inanimada harmonia
Atrelada ao sentir
Sentar em estrelas
Com canecas secas
Desse velho chá
Já sei o gosto que tens
Sei o livro que lês
Se te faço o jantar
Querendo garfos
Ramos tortos, copos rasos
Parcos traços nossos
Sendo eu próprio, teu cear
Espero beleza alheia
Com a caneca cheia
E fome de te olhar
Sonhos sóbrios que se usa ter
Já é velha questão
Na realidade que costumo ver
Amanhã fui o simples ser
Velho futuro que se têm nas mãos
Soro leve que só faz soprar
Pesado fardo do que não se vê
Respiro leve que quero guardar
E se em mim ainda restar ar
Afundo
No ébrio mar que me afoga o mundo
Olhando o tempo que você me vê
Sonhando lento o que te faz voltar

sexta-feira, 4 de junho de 2010

De cachos dourados e dedos dançantes

 

- E aqui estou eu, nesse belo hotel em Santa Tereza para o casamento do William e da Tina. 

- Que bom, não é mesmo?

- Santa Tereza! O que eu estou fazendo aqui raios!? Quantos habitantes tem esse fim de mundo? Uns 200?  E desses 200, devem ter no mínimo 199 nesse casamento.  No mínimo 199! Porque eu tenho certeza que o William não ia convidar aquele cara ali. Há! Certeza.

- Qual cara?

Eu estava encostado na janela, olhando para a incrível paisagem do lado de fora. Era praticamente Paris nos anos 20. Uns três mendigos brigando por um jornal, uma pessoa tendo problemas carregando um saco de pão e a pessoa em questão. O tal cara que o William não convidaria. Bom, pelo menos eu duvido muito, mas nada me surpreende nesse buraco de vespas. É quase um maldito Kinder Ovo, só que sem o brinquedo. Ou o chocolate na verdade. E como se você comprasse um Kinder Ovo, mas sabendo que não ia receber absolutamente nada. Exatamente assim.

- Esse cara ai na rua! O cara tem um bigode colorido! Um bigode! Porque essa gente do interior acha que pode criar a sua própria moda? Putz, isso acaba comigo. Qual é a cor daquilo? Roxo?

Ela caminhou até a janela. Calmamente, claro. Caminhava de uma forma própria, era como se deslizasse pela vida, esperando o momento certo de destruir todas as minhas crenças. Acabar com tudo que eu acredito.  E putz, claro que agora ia fazer isso novamente, óbvio. Ela não sabe fazer outra coisa. Só acabar comigo, poxa. Só isso.

- É, acho que é roxo sim. O que o William tem contra isso?

- Ha há ha! O que ele tem contra isso? Olha amorzinho, ele não suporta essas coisas! Simplesmente não suporta, poxa.  Bigode roxo? O que uma pessoa como essa, espera da humanidade? O William ia ter o prazer de convidar o cara, só pra desconvidar ele depois! Ah! Tenho certeza, certeza! Na verdade, até agora não consegui entender porque ele aceitou vir pra essa cidadezinha se casar, não faz sentido droga!

Ela voltou a sentar no sofá, não gostava de janelas tanto quanto eu. Eu poderia passar a droga da vida inteira olhando pela janela. Bom, talvez não seja verdade. Mas ela não gostava nada de janelas, nada. Ela morria de medo de altura, de verdade. Já ficava um pouco tonta só de olhar para a droga da janela!

- Na verdade, acho que foi ideia dele até.

- Ideia dele? Putz! Não acredito. É aquela Tina lá, essa chata acabou com toda a alegria do safado! Mais ou menos o que você fez comigo.

Ela não pôde deixar de dar uma risadinha, claro. Ah, ela sabe das coisas, realmente sabe. Droga, sempre a mesma coisa.

Lembra do William antes de conhecer essa Tina?  Você lembra dele? Putz, o cara era maluco! Era o filho da puta mais insano que eu já tive o desprazer de conhecer! Ele não se importava com merda nenhuma! Agora ele tem até uma maldita carteira de motorista! O próprio William que só fez um documento de identidade com 24 anos cara! Ele deve ter até uma droga de uma poupança agora! Há há! Poupança, rapaz. Na verdade ele deve até estar usando meias, agora. Você lembra do discurso sobre meias dele? Lembra sim! Eram horas e horas falando sobre malditas meias. Era algo como, que as meias eram só metáforas para as algemas do governo nos segurando pelos pés. Pelos calcanhares! Que como Aquiles era o ponto fraco do coração da sociedade! Sei lá! Ele era maluco, aquele filho da puta.

Ela estava me olhando como se eu estivesse discorrendo sobre o assunto mais desinteressante da terra! De verdade! Putz, era como se eu tivesse falando sobre métodos reprodutivos das  briófitas ou alguma merda dessas! Deus, tá ai alguém que consegue me irritar. E ela adorava o velho Will! Tenho certeza, droga, certeza. E continuou me olhando. Mas estava pensando em estampas, ou algumas dessas coisas que ela gosta, sei lá. Eu tenho cara de uma maldita estampa?

- Na verdade, acho que tem uns 1600.

- 1600 o que? Minutos que eu tenho que aguentar essa maldita cerimônia ainda? Por favor, não! Diga que não! Que saia uma droga de uma boa notícia dessa boca, amorzinho. Só uma vez, vai.

Ela então pegou um de seus cachinhos, claro. Ela sempre faz isso pra me irritar. Agarra um daqueles belos cachinhos dourados (E poxa, rapaz, que cabelo bonito que ela tem. Ela sabe o quanto aquele cabelo mexe comigo) e fica ali perdida no seu próprio mundo com cachinhos. Como se eu fosse qualquer idiota. Ignorava-me como se eu fosse um mendigo pedindo pinga. Não, não. Muito mais triste do que isso. Poxa, muito mais. Me “olhava” com pena, pena mesmo. Era mais um mendigo pedindo sopa. Ou quem sabe simplesmente carinho. Carinho, droga.

- Eu acho... É, tenho quase certeza. Que essa cidade tem 1600 habitantes. Um pouco mais de 200.

- Tá, tá, tanto faz poxa. É aquele tipo de cidade que metade é de uma família e metade é da outra. Isso era o que eu queria dizer, isso. Toda essa cidade é só uma grande desculpa para incesto descontrolado!  Sabe o que vai acontecer se a gente ficar muito mais tempo aqui?

- O quê?  Vamos entrar em alguma dessas famílias por acaso?

De repente, hesitei por um segundo. Na verdade simplesmente vi que o meu argumento não fazia o menor sentido. Acontece. Às vezes isso acontece, droga.

- É... Claro! Exatamente isso. Vamos ser sugados por essa droga dessa subcultura suburbana. Com homens de bigodes roxos e bicicletas grandes demais para as pessoas. Toda essa droga e muito mais! Muito nos espera! Uma vez nesse buraco, ele vai te sugando, te puxando pra dentro. Vamos sair dessa cidade fazendo bolos pra quermesse! Na melhor das hipóteses, que fique claro.

Agora ela pegou um cigarro, Deus, como odeio o jeito que ela pega esses cigarros. É como se fosse uma droga de uma apresentação circense. Ela acha que pegar a merda do cigarro é o epítome do burlesco. Tem toda a sua graça, aquele seu riso de canto (sarcástico claro, eu convivo com a pessoa mais irritantemente sarcástica da face da terra, muita sorte nessa, puxa) os dedos em uma verdadeira dança! Dedos dançantes! Rapaz, tudo isso só pra agarrar um daqueles malditos cigarros de cereja dela. Odeio cerejas. Ela botou o cigarro na boca e olhou agora, diretamente nos meus olhos, diretamente.

- Pensando em todo o “epítome burlesco” de novo?

Tragou o maldito cigarro com prazer, sincero prazer.  Podia sentir os orgasmos sabor cereja emanando dela, até o gosto.

- Não, não! Burlesco? Eu nem sei o que é isso! Eu estava pensando em como essa linda cidade é bem organizada! Uau! Eu nunca tinha visto lixeiras viradas de boca pra baixo na rua! Deve ser a última tecnologia, ouvi que estão usando em Paris e em Helsinki. Tenho que relatar o uso de recursos tão sofisticados imediatamente às grandes capitais brasileiras! Mas imediatamente!

Nossa essa mulher realmente me conhece. Putz, chega a ser assustador. De verdade, às vezes acho que ela lê a minha mente ou algo do tipo.

- Eu acho que você nem sabe o que significa “suburbano”.

Realmente não sabia. É, não sabia, mas ainda acho que aquela cidade é bastante.

- E o que isso importa? Hein? De verdade, como isso vai fazer alguma diferença nessa sua vida de princesa? Hein, amorzinho? Que o suburbano vá à merda! Eu gostaria de saber na verdade, saber mesmo, juro. A coisa que eu mais queria saber no universo. Jogaria até uma droga de uma moedinha na fonte pedindo isso! O que raios estamos fazendo aqui nessa cidade que não tem nem ao menos uma bandeira! Sabia disso? Não tem! Eu vi na Wikipédia, droga.

Saí da janela. Não preciso sempre fazer questão de me deprimir ainda mais com esses lugares horríveis sabe? Realmente não preciso. Eu não sei quando parar, juro, eu não consigo. Sentei com muito desgosto em um tipo de poltrona terrivelmente desconfortável. E que estampa horrível, Deus. Essa cidade é um maldito paraíso Kitsch. 

- Como assim o que nós estamos fazendo nessa cidade? Viemos para o casamento do William e...

-... Do William e da Tina, tá, tá, eu sei droga. Viemos para essa verdadeira festa do Olimpo, o bacanal de Santa Tereza. União da droga do amor perante os olhos de Deus, Ok. Mas porque eles tiveram que fazer a cerimônia aqui?

- Ora, a Tina é daqui. Por causa da família dela. E fique sabendo, que a Wikipédia não tem tudo. Eu já vi a bandeira daqui, lá na prefeitura. É até bonita.

Ela levantou, mas ela levantando era uma ocasião especial. Pra mim pelo menos, mas gosto de pensar que para o mundo todo também. Ela tinha um jeito muito especial de levantar, era como se todos os malditos Deuses parassem de fazer o que raios ele fazem, só pra apreciar essa tão cotidiana cena. E rapaz, eu apreciava. Todos os dias. Tudo valia a pena, se eu pudesse vê-la levantando pelo menos. Deus, pelo menos isso. Ela se levanta com um giro! Juro, um giro. Parece um peão ou uma bailarina. Só que ela não tem graça o suficiente para ser uma bailarina. É mais como um peão bonitinho, falo sério. Não tem uma melhor maneira de descrever. Ela, sempre de saias, mostrando suas belas pernas. Bonitas de verdade, ela sabia como provar que essas coisas que nós usamos pra caminhar e sei lá, chutar, eram muito mais do que isso. Eram verdadeiras obras de arte droga. Obras de arte. Ela caminhou (por incrível que pareça, mesmo) até a janela e virou bruscamente para mim. Seus olhos como mísseis muito discretos. Putz, que péssima metáfora.

- Não vai dizer que a Wikipédia é equivalente à um Jesus Cristo do século 21 ou uma coisa dessas?

A dança acabou. As bailarinas morreram. Ela jogara o seu já bastante gasto cigarro pela janela. As cortinas se fecharam e tudo mais. Que cena, Deus, que cena. Eu realmente gostaria de dizer tudo que eu pensava sobre a Wikipédia e Jesus (fazia isso constantemente, mesmo), mas já não conseguia. Estava completamente mesmerizado pela sua dança, completamente. De repente estava em um belo hotel em Santa Tereza para o casamento do William e da Tina. Droga, sempre a mesma coisa. Sempre os malditos cachos dourados e dedos dançantes.

- Não, droga. Não vou falar nada.