quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Um Pedaço

 

“Venha você também para o céu! Um azul celeste celestial, sereno, calmo e fenomenal!”

            Essa era a propaganda, isso foi o que eu ouvi o tempo todo. Dizendo pra eu ir de uma vez, “encarar essa viagem”, “embarcar nessa aventura” e todo tipo de propaganda ridícula. Vender um pedaço do céu! Quem teve essa idéia ridícula? Não tem como algo desse tipo funcionar! É simplesmente impossível! O céu devia ser de todos, para todos! E eu devia saber disso, até hoje tento me lembrar. Mas eu queria comprar, não sei se por pressão popular, medo do contrário ou de o simples medo de ficar sozinho em algum tipo de limbo ou qualquer coisa, eu não sei! Não fazia sentido nenhum tudo aquilo. Não fazia nenhum sentido.

            Em minha defesa, o dia em que eu comprei esse dito “pedaço do céu” foi sem maiores dúvidas o dia mais estranho da minha vida. Começou estranho e terminou... Bom, terminou mesmo. Digamos que é a forma mais “estranha” que o seu dia pode terminar, confiem em mim. Era novembro eu acho, eu sou péssimo pra meses, eu só sei que era final do ano, eu lembro de todo aquele clima de natal, papai Noel, renas e tudo mais. Aquela felicidade natalina que todos nós conhecemos, a mesma hipocrisia de sempre, convenhamos. Saí de casa tarde aquele dia, especialmente tarde, umas duas da tarde mais ou menos. Não me lembro muito bem por que. Acho que eu fiquei acordado até tarde vendo algum programa de TV imbecil como sempre, sempre tenho esses problemas com a televisão da madrugada. Nada é mais prazeroso do que assistir algo de transmissão nacional que você sabe que não tem ninguém assistindo. Faz eu me sentir mais especial do que tendo um maldito “pedaço do céu”

            Saí apressado de casa sabendo que teria que fazer duas coisas sem falta naquele dia, levar minhas roupas na lavanderia e ir naquela maldita reunião. O grande problema é que a minha lavanderia fica a umas 15 quadras da minha casa, e a reunião é a umas 15 quadras pro outro lado da minha casa! Então eu ainda ia ter que pegar um ônibus. Eu odeio muito andar de ônibus, ônibus combina todas as coisas que eu abomino em um pequeno espaço com rodas: Pessoas, muitas pessoas e cadeiras de plástico, nossa como eu odeio cadeiras de plástico. Talvez por isso que eu queira meu pedacinho do céu. É a esperança de ter pouca gente e cadeiras decentes, por favor. E a lavanderia, embora longe, ela é a única que eu posso me dar ao luxo de realmente pagar pelo serviço ao qual estão prestando, a única mesmo, acreditem.

            Caminhando pela rua, eu gosto de prestar atenção nas pessoas, presto atenção mesmo. Eu sei que eu disse a pouco tempo que eu não suporto as pessoas, mas a beleza de tudo isso é que ao mesmo tempo eu as amo, muito. Eu devo ser a pessoa que mais se importa com essa sociedade destorcida em que nós vivemos. Eu sei que sem pessoas não existiria nada, seria só um sarcasmo vazio, um comentário sem espectadores. Eu sei que se as pessoas não existissem, não haveria nenhuma das coisas que me diverte, afinal é exatamente isso que me diverte. As malditas pessoas. Entendendo as pessoas do jeito que eu entendo, eu realmente olho pra elas. Eu não consigo andar na rua. Eu penso o que essas pessoas querem ser, o que elas foram, pra onde elas vão quem elas conhecem e o que elas vão jantar essa noite. Esses são pequenos enigmas que nunca deixam as minhas caminhadas se tornarem monótonas. Eu me divirto muito comigo mesmo, mas graças aos outros. Isso  tudo resulta em grande frenesi contemplativo da minha parte e antes de eu perceber já estava parado na parada de ônibus olhando para essa grande placa, essa enorme propaganda de chocolates. Simplesmente tão convincente e efusiva quanto a propaganda do “pedaço do céu”, parece estranho não?

Ouvi uma daquelas malditas musiquinhas polifônicas de celular, mas aquelas chatas mesmo, aquelas que tentam ter uma sensação de lambada, com umas marimbas e todo aquele “Feeling” latino. Você quase sente que foi parar em um clube de salsa no meio da rua, simplesmente genial. Obviamente esse momento Tito Puente fora proporcionado pelo meu velho celular, que estava me lembrando que eram três da tarde e eu nem mesmo almocei. Eu tinha prometido pra mim mesmo que eu ia me lembrar de almoçar de vez em quando, a lavanderia ficava aberta por mais algum tempo e a minha reunião era só mais para a noite. Somando os fatos, fui almoçar. Por sorte havia esse “bom” restaurante vegetariano a umas duas quadras dali, Vegie era o nome. Coisa fina, chique mesmo, o tipo de lugar que não escolhe se os talhares são de plástico ou de metal. Um estabelecimento onde plástico e metal compõem uma bela miscelânea de ferramentas alimentícias. Então, todos devem estar se perguntando “o cara reclama de tudo e ainda é vegetariano?” é mais ou menos isso mesmo, me tornei vegetariano há umas duas semanas quando, no meio de uma ida ao dentista, eu finalmente parei pra pensar no que era a carne. São animais mortos pessoal! Todos estão comendo cadáveres! Aquilo me assustou como nada me assustava há uns 15 anos, quando eu vi aquele filme do palhaço assassino.  Nunca mais consegui comer carne, menos bacon. Mas quem é que gosta de porcos mesmo? Não vale a pena, prefiro o meu velho bacon. Melhor que amor verdadeiro.

Quando eu cheguei à porta do restaurante, me deparo com um mendigo, eu acho que era um mendigo porque o cara tinha umas roupas melhores do que as minhas. Só que a combinação de roupas era tão esdrúxula e ele tava tão sujo (além de ele ser completamente louco) que eu só pude chegar à conclusão de que ele era algum “tipo” de mendigo.  O “mendigo” segurava um singelo e acabado ramalhete de flores com muita força e estava gritando alguma coisa pro caixa do restaurante. Algo sobre o amor e uma flor, e como nós temos que amar todas as pessoas e que o amor é tão simples quanto uma pétala de alguma coisa. Ou seja, aquele velho discurso de cartões e apresentações do PowerPoint que ninguém abre, só que pior, na rua e aos berros. Com a minha cara de cidadão sem fé prestes a ser convertido (que cada vez mais, eu acredito que eu tenho mesmo. Também depois de umas 15 seitas diferentes já terem tentado me levar com elas. E isso vai de testemunhas de Jeová até funcionários da natura, sem brincadeira) Obviamente o senhor mendigo bem vestido veio falar comigo, não só falar como contestar toda a minha experiência de vida. Ele disse algo como “COMPRE ESTA FLOR, SINTA O AMOR, EU VEJO QUE VOCÊ NÃO CONSEGUE ENTENDER O SIMPLES TRANSCORRER DO AMOR ENTRE OS SERES HUMANOS” É bem nesse estilo mesmo. Mas eu virei pra ele e disse “Meu querido, acho que eu vou comer um cachorro quente.” Joguei umas moedas pra ele e fui comer o meu cachorro quente mesmo, ali do lado e com bacon ainda por cima. Salsicha nem é carne.

Corri para a parada de ônibus, já estava com pressa. O mendigo moderno tinha me desconcertado um pouco, parei por um segundo e realmente pensei no amor, pensei de verdade. Talvez eu devesse até ter comprado a flor do mendigo, um pouco de amor nunca faz mal, eu acho. E com a cabeça no amor e em coisas boa por um momento, eu entrei no ônibus. Naturalmente fui simpático sorri e disse um sincero “boa tarde” para o motorista, que simplesmente desferiu algum tipo de grunhido, algo entre um GRUNF e um RUMGF, não consegui captar muito bem. E isso é uma coisa que me incomoda, algo tão simples, mas que realmente me incomoda. O mau-humor desnecessário de todo mundo, todas as pessoas sempre nos olham com ódio no olhar. De certa forma era isso que o mendigo moderno reclamava e eu mesmo fazia parte desse grupo de indivíduos mal humorados. Aquilo me deixou um tanto quanto pra baixo.

Levei um pequeno choque quando olhei pra frente dentro do ônibus, haviam algumas pessoas sentadas dispersas pelo ônibus, normal. Mas todos tinham flores iguais as do mendigo! Iguais!  E mesmo eles estando em poder daquelas flores que eram o símbolo do amor que ele distribuía, todos me olhavam como se eu fosse algum tipo de monstro, me senti ainda pior naquele momento. Olhei pra trás, o motorista também tinha uma das flores do mendigo. Vi que aparentemente, eu que estava errado ali, eu que não tinha aceitado a idéia daquele “amor”. Foi estranho, me senti estranho. Tão estranho que as 15 quadras passaram em segundos e por sorte cheguei “rapidamente” na minha parada. Desci com pressa enquanto olhava pra trás, todos ainda me olhando, me julgando.

Já estava bastante perto da lavanderia. Eu me animei um pouco com a idéia de estar indo até lá, eu me divertia muito nas minhas idas a lavanderia. Era o equivalente a um parque de diversões pra mim. Sim, eu sou o tipo de pessoa que se diverte indo para a lavanderia. O dono era uma das pessoas mais interessantes que eu já conheci. Sabem como lavanderias são sempre de chineses? Bom, esse era um japonês, mas não só  um japonês, um japonês alcoólatra! Um japonês alcoólatra que se vestia como um samurai! Sempre! Ele realmente saia na rua assim! Aquela vestimenta clássica de samurai, o cabelo de samurai, tudo, só faltava uma espada (Que ele por sinal usava, até ter alguns problemas com a lei local. Por alguma razão não gostam da idéia de um cara andando na rua com vestimentas da era feudal, uma espada e uma cerveja). E junto com tudo isso, uma cerveja na mão. E não só pelo samurai urbano que eu gostava de ir à lavanderia. É um lugar mágico, pra mim realmente é um lugar incrível. Mesmo essa lavanderia capenga, ainda matinha a sua magia. Eu sou um tanto quanto maníaco por limpeza, coisas limpas me dão um prazer indescritível. E ver todo aquele processo de lavagem e secagem e preparação, é renovação. É tornar o velho e sujo em algo novo e limpo. É uma metáfora, uma forma de ver as coisas, muito mais do que uma simples ida lavanderia. É um ritual de passagem, é o que você quiser que seja.

Não me contive em parar por um segundo e admirar a velha e caída placa da lavanderia “Lavanderia Schbeib’s” diz na placa. Nunca entendi o porquê desse nome, também nunca ousei perguntar. Eu achava que iria acabar com toda a magia. Eu me divertia inventando teorias para aquele nome totalmente sem nexo era ótimo, uma coisa só minha. Fiquei olhando para a placa por algum, mas dessa não estava pensando sobre o nome, eu pensava realmente sobre a placa. Uma placa velha e carcomida de um lugar que quase ninguém sabe que existe, me dizia muito aquela placa. Ela era como todos nós, ela queria espaço no mundo, ser notada desesperadamente, ela também devia querer só o seu “pedaço do céu” e nada mais do que isso.  O samurai urbano gostava bastante de mim (talvez porque eu fosse um dos seus quatro clientes) e eu era muito bem tratado e sempre pedia conselhos sobre a vida para ele. Nós costumávamos divagar e filosofar um pouco, ele era uma pessoa bastante sábia, sempre falando com muitas metáforas e analogias. Acho que os asiáticos fazem isso. Desta vez eu comentei sobre toda essa tendência de “comprar um pedaço do céu”, contei minhas dúvidas e inseguranças e perguntei o que ele achava de tudo isso. Contei também sobre o acontecimento recente envolvendo o mendigo moderno e as flores. O que era o amor e se nós realmente estamos sentindo e querendo sentir o que devemos. Ele simplesmente tomou um grande gole de sua cerveja, e me disse: “É como se todos fossem ovos, a casca protege a sua gema de tudo que pode feri-la, atingi-la, sentimentos e angústias, garfos e facas. E sempre existe aquele ovo sem gema, só com a casca e mais nada. Pare de pensar que você é o ovo sem gema, porque não existindo a gema como pode ser um ovo? Sem a sua gema jovem, como pode ser humano?”

E aquilo, realmente me fez pensar. Esses asiáticos realmente têm a mente infinitamente mais aberta que a gente. Eles vêem nas pequenas coisas, o grande plano. E acho que esse deve ser todo o segredo da existência. Naquela hora, já tinha ainda mais dúvidas quanto ao meu “pedaço do céu”. Estava do lado de fora, na rua. Parado e imerso e pensamentos como eu costumo fazer, sem perceber. Quando passou por mim um homem extremamente parecido com o Clodovil e me perguntou às horas. Voltei para a terra de golpe e vi que se eu quisesse chegar a tempo na reunião, tinha que ir para lá imediatamente! Ônibus de novo? Depois da última viagem, acho que não. Resolvi pegar um maldito taxi Eu teria que ficar pensando em assuntos pra conversar com o taxista enquanto ele escuta aquelas rádios terríveis, mas ainda assim era melhor do que pegar outro ônibus. Não ia andar de ônibus por algum tempo.

Cheguei ao local da reunião e consultoria. Sim, esse era o momento que eu iria avaliar o meu já tão falado “pedacinho do céu”. Ia decidir pela compra, ou não. Eu ainda tinha grandes dúvidas quanto a isso. Mas era uma grande discussão, como um fórum, várias pessoas iriam argumentar sobre o seu direito a um pedaço, eu poderia ver o que os outros pensam de tudo isso. Eu esperava que depois disso, pudesse me decidir enfim.

Era um lugar antigo, grande, imponente. Exatamente do jeito que você imaginaria um lugar que mexe com coisas como venda e aluguel de fragmentos do céu. Tinham algumas pessoas, algumas pessoas mesmo. Umas 50, todas sentadas à frente de algo como um juiz e um júri. Parecia realmente um tribunal, era esse clima exatamente. Sentei bem ao fundo, para ver e analisar todas as pessoas que estavam ali e nossa, havia todo tipo de gente. Homens, mulheres, crianças, brancos, negros, asiáticos, latinos, pobres, ricos, tudo. Era uma verdadeira torre de babel, mas sem as partes divertidas. As pessoas começaram a se expressar, todos tinham algum sério problema. Não necessariamente sério para qualquer um, mas muito sério para eles. Todos tinham algo que realmente os incomodava, algo de peso. Todos eles queriam algum tipo de salvação, segurança. Algo que dissesse “calma, algo de bom vai acontecer”. Eu percebi que apesar de tudo, eu não me encaixava nem um pouco com aquela gente, com aquele clima. Eu não queria acreditar que eu era também um ovo sem gema como eles. Eu era mais do que isso e eu sabia.

Quando me perguntaram: “Qual é o seu problema?”. Eu respondi em alto e bom som “MEU PROBLEMA É NÃO TER NENHUM PROBLEMA”. Eu não tinha nada realmente grande que me incomodasse de verdade, gostava da vida e a levava com tranqüilidade. Eu conseguia ser como os asiáticos, as pequenas coisas importavam muito pra mim, mas eu as transformava em problemas. Quando eu sabia, que elas sempre foram a solução. Eu não seria nada sem as pequenas coisas, sem as pessoas para que elas existam, e tudo que faz parte de todas as coisas que eu analiso tanto. Mas analiso porque me importo, porque eu realmente me importo. Já tinha o meu pedaço do céu, todo esse tempo. Eu já tinha o meu pedaço.

Saí de lá correndo. Olhei para todos os lados da rua, olhei com atenção. Vi o mendigo moderno ali por perto. Pensei em correr até ele o mais rápido possível, comprar a minha flor. Contar pra ele que ele estava certo afinal, o amor é simples, a resposta é simples. Aquele mendigo sim tem todos os pedaços do céu com ele. E os distribui com um sorriso no rosto.

Corri até ele, sem olhar para os lados, para trás. Para lugar algum. O ônibus veio subitamente, sim aquele mesmo ônibus que eu tinha pegado antes. É como eu disse, nunca mais vou pegar um ônibus na vida.

 Mas estava tudo bem, já tinha o meu pedacinho do céu.