“One day I will find the
right words,
and they will be simple”.
Em matéria de amor,
ela fez um gesto com a cabeça. Algo que
ela faz quando eu digo uma coisa muito exagerada, mas não quer demonstrar assim
com tantas palavras. É um reflexo, como ajeitar os cabelos, ou morder a ponta
de um velho lápis. É uma clara expressão de dúvida, um mover quase pendular do
pescoço, levando a cabeça de um lado para o outro como que tentando processar a
informação. É um sino confuso sobre em qual lado deve bater mais. É um lábio
nervoso que come inevitáveis pedaços de borracha rosa, daquelas que apagam
menos do que uma lembrança. Eu também preciso do meu lápis e não deixo o
espetáculo passar; esse movimento que ela
aprendeu comigo - e por minha causa,
tenho certeza - pode muito bem ser a coisa mais bonita do mundo. Um gesto, como
que esperando, realmente, achar que o
que eu disse foi só uma coisa corriqueira, mas descobrindo que é ainda menos do que isso. É participar do meu
processo e, se o acaso deixar, entender, ou só ouvir mais um pouquinho. Enquanto
isso eu só sei continuar, como sempre, as minhas intermináveis e excessivas
histórias de infância.
- E ela disse que não me amava, ali mesmo, em cima da
casinha de madeira, do lado dos balanços e com outras crianças gritando ao
fundo. Simplesmente o pior lugar onde poderiam fazer isso comigo, ao lado do
meu balanço preferido. Acho, inclusive, que tinha um garoto atirando areia na
minha cara enquanto isso. Mas eu não o culpo, mesmo, eu faria igual. Alguém
precisava acabar com aquela cena. Era mais digno me assistir comendo areia.
E ela não
disse nada, não diz nada. Parece ser
algum tipo de padrão, o silêncio dela. Só
olha pra mim, com um sorriso de canto, uma saia rasgada, e a dor de todos
os mundos do universo. Os seus olhos são retas e o seu rosto se compõe com
linhas, é uma colagem de expressões simples e pequenas. É aquele tipo de
paisagem que se forma com a própria vida e você não consegue olhar para outro
lado, porque, simplesmente, sabe que não existe nada que vibre mais do que
isso. Ela, por si só, ela, cabe em
uma folha A4, quase pertence ao papel
prisão, só que provavelmente não entraria lá de bom grado. Ela é forte, porém para
desenhar o seu rosto eu só preciso de, no máximo, uns seis traços, e teria que
fazer isso da forma mais leve possível, flutuando, ou em cima de algum algodão
doce. Eu queria fazer isso agora mesmo, queria desenhá-la! Deixá-la por perto,
vê-la na gaveta toda quarta-feira mais solitária. E até apagá-la. E criar tudo
de novo - em cima do papel - ao lado de todas as coisas que restaram. Colorir, quem
sabe; só se eu conseguir achar todas as suas cores. Não que ela seja colorida,
pelo contrário, ela é sóbria como o papel em branco. Mas ela colore, e tudo, da forma mais
simples possível e, tão absurdamente linda, que rouba o cinza de tudo que faz
sentido, só rindo de mim. Quero parar com tudo que não tenha esse tom. Quero
descer dessa cidade e quero sentir a minha avenida. Eu só quero viver essa vida
de rabisco.
As suas sobrancelhas cabem no bolso, cantam de lado,
mas o sorriso já faz o serviço.
- E o que tu fez?
- Aquilo, naturalmente, arruinou o meu dia. E toda a
primeira série. Eu tinha certeza que todas as crianças comentariam sobre isso e
jogariam na minha cara, se se importassem, é claro. E pelo visto, não se
importavam muito. Acho que eu queria um
pouco da atenção delas. Era o fim do meu mundo naquele ano, não devia ser um
evento tão pessoal assim. Era muita coisa pra se sentir sozinho, sabe?
Ela ri, mas eu não entendo e só queria conseguir parar de falar. Ri culpada, não quer
achar graça da minha desgraça, mas uma risada é a única coisa que ela tem para
me dar. É só mais um presente mal escolhido, nem de longe desagradável, só que não
é do meu tamanho. É difícil comprar roupas para qualquer pessoa hoje em dia, é
difícil comprar uma cueca para uma
pessoa, e parece fácil ser o momento mais bonito da minha vida, hoje. O começo
do mundo. O desenho do dia.
Eu ainda não descobri uma boa forma de calar a boca,
principalmente quando caminhando na mesma rua de sempre. Cada centímetro desse
lugar, cada segundo, parece conter duas ou três lembranças de infância
levemente intensas; e intensamente leves. Um paralelepípedo marca um trauma
diferente, ou até uma descoberta, às vezes. Eu caminhava muito quando criança,
mas não tinha muitos lugares para onde ir. O destino era limitado às
obrigações. Andava-se por onde se devia andar;
a liberdade só restava na cabeça. Como consequência, passamos agora pelo
centímetro onde eu descobri que minha cabeça talvez fosse grande e pesada
demais para o seu pequeno corpo.
- Porra, sério isso?
Não, não foi ela
quem disse isso. Acontece que não estamos sozinhos, nem nunca estaremos.
Não fora de um papel em branco.
- Sério, sério. Eu
tinha, simplesmente, muito tempo livre pra pensar. Tempo demais.
E ainda tenho. Eu quero mudar de assunto, matar os assuntos, mas olho pra ela e é evidente o velho gesto com a
cabeça. O silêncio é impossível. O silêncio pertence a ela e não vai ser cedido tão cedo. Passamos pela igreja, a velha
igreja; a minha igreja, e minha
cabeça só consegue vomitar todas as histórias do reino de deus.
- Eu vim aqui uma vez, obrigado pela minha mãe. Nunca
gostei muito de igrejas, sempre tive medos dos vitrais, de santos e,
principalmente de anjos. Passei, mais ou menos, dos meus seis aos oito anos de
idade achando que eu ia me transformar espontaneamente em um anjo. Do nada,
simplesmente.
Dobram-me os sinos com sorrisos e uma risada contida. Soa
o barulho da minha cidade, o ruído canção de ninar da Avenida Independência,
esquina com a Coronel Vicente. Além do inevitável:
- Por quê? – Ela
pergunta com o lábio de quem já sabe a resposta. De alguém que não se entende
com os anjos, provavelmente porque pedem muito espaço.
Mas é inevitável – a presença deles; lotam o lugar
como se andassem de bicicleta; explodem todo o espaço e, junto com eles, no
sopro da velha corneta, vem a paz.
Não se estaciona no reino dos céus. Não se fala mais sobre o amor. Só olham
para ela, todos. Eu; os anjos; o
cenário todo cai em desconstrução.
- Ah, por causa de uma novela, eu acho. Tenho certeza na verdade, só não sei se isso
consegue ser socialmente aceito. Eu sempre fui extremamente impressionável. Mesmo.
- Que intenso cara. – Diz o meu amigo, andando conosco
como quem não quer nada; alguém que nem suspeita do universo inteiro
conspirando esse momento, que isso não é só uma caminhada entre amigos e que
hoje não é apenas mais uma quarta-feira. O tempo mudou e as cores nunca foram
as mesmas. Tudo acabou e os dromedários
marcaram o tempo.
Ela, ela, se
afasta. Caminha lento no deserto, reto, cambaleante. Roubaram-me os traços, não
sei mais a simplicidade do retrato. Só posso admirar de longe – calado – falar
já não é possível; contornar é inevitável. De trás, de longe, eu vejo o casaco dela; vejo o cachecol que ela usa; sinto o seu passo lento, os pés
tropeçados. Ela sabe onde está - isso
é a casa dela. Ela caminha com a
propriedade de quem sabe tudo, pertence a
tudo isso. Ela é má. Ela é boa. E ela usa um casaco inevitável à causa - crochê
com desenhos de pequenos dromedários; dromedários dançantes; dromedários que dançam no barulho da cidade; que
rodopiam-bailarina pela noite,
explodindo o que dá na cor que lhes
resta; que caminham, seguem o caminho, e, certamente, tropeçam junto com ela.
Buscam o calor juntos no deserto. Já é noite, não é fácil ser um
dromedário; não é fácil carrega-los por aí e não deixa-los cair do bolso.
Não é fácil assistir a tudo isso. Não na cidade, não na
frente da minha casa.
Já na portaria, não tardei em escutar os estalidos, o
andar suave e despreocupado dos belos camelídeos. O anúncio dos seus cílios
longos e protuberantes - que protegem da dor. Em meio a eles, os meus pontos e linhas
voltavam à vida. Ela veio. Ela disse.
Ela prendeu os cabelos e mordeu o lábio inferior. Conversávamos, eu e ela; era
como se os dromedários já não estivessem mais ali – se juntaram aos anjos,
voavam longe, olhavam espantados. Tinham sede, e eu também.
- Então, eu tenho que ir... Não tenho muito tempo. – Ela fez questão de dizer a todos,
destruindo a noite, calando até. E sim,
sim. Você tem que ir, tudo bem, tudo
bem. Todos nós temos que ir. Todos têm que aceitar a noite, à noite. O filme acaba,
o espetáculo não dura pra sempre. O sino tem que parar de bater.
O carro está perto, nunca é o contrário. A caminhada é
breve e eu também não estou mais em casa. Fomos todos juntos; ela logo parou de tentar me entender e quis se explicar. Contou
sobre como não gosta do vento, sobre o pintar das unhas, e que tocava bateria,
às vezes; eu quis fechar a porta, escolher a cor, e tocar bateria. Eu sempre
quis tocar bateria. E eu quero casar com ela – da forma mais sincera – nesse
momento, agora, pro resto do meu dia. Quero acordar hoje todos os dias e olhar para ela. Desenha-la. Procura-la, pela
rua, na gaveta, em toda quarta-feira mais solitária.
Entramos no carro, no banco de trás, e eu confesso
tudo, não tem por que esconder:
- Eu gostei muito do seu casaco, com os camelos.
Ela ri sem medo; se deixando levar da forma mais
contida que consegue. Não devem ser camelos, – ou dromedários - mas para mim não
podem ser outra coisa e, para ela,
não faz diferença.
Seguimos em frente, na conversa, no caminho - e eu
ainda não sei para onde estamos indo. Não consigo guardar pra mim, deixar
acontecer. Eu quero saber, eu preciso saber. O mundo vai acabar e eu não quero
perder o momento.
- Pra onde a gente tá indo? – Eu falo, comedido;
gritando, desesperado.
- Eu tenho que voltar pra casa. Eu não moro aqui, moro
em Santa Maria.
– Ela diz; e eu só penso em como não
pode ser tão santa, a Maria que tira ela de mim.
- Santa Maria? Então você é de Santa Maria?
- Não! – Ela replica estranhamente exaltada. – Eu sou
daqui! – E abre em um sorriso. – Eu nunca nem fui ao supermercado lá.
Eu quero que essa conversa dure para sempre, mas eu
não consigo parar de pensar no supermercado em Santa Maria. Como
é? Porque ela não vai ao
supermercado? Será que eu não posso ir com ela? Comprar uma coca e uns biscoitos;
sentar em um banco, na rua. Conversar um pouco. Em Santa Maria , aqui, em qualquer lugar. Olhe para o
supermercado, dê uma chance, ele está aí ao lado. Entre no supermercado, pegue
um carrinho, corra com ele, até compre algumas coisas. Ande no supermercado, descubra
cada canto, saiba onde comprar laranjas. Ame no supermercado, aqui, em qualquer lugar. Só não vá
embora, vamos ao supermercado. O carrinho é sempre grande demais, a fila é
longa, mas é um santo supermercado; tenho certeza. Vamos ao supermercado, eu
carrego as sacolas, não precisa do CPF na nota, não, não, muito obrigado. Não é
pra isso que nós vamos ao supermercado. Reze no supermercado, por favor, peça
para os anjos ficarem de pé, pesarem as frutas - que só olhem pra gente. A vida
não é assim tão fácil, chore no supermercado. Chore. Sinta a minha falta no
supermercado.
E o tempo acabou; era o fim do mundo, mas já não era
tão pessoal assim. O mundo sabe. O mundo tem certeza. Ela se despediu rápido, saiu sem jeito; os dromedários voltaram, em
galope, aflitos, sabendo o final dos tempos. E ela saiu - sozinha, só ela.
Contra o mundo, contra a rodoviária.
E eu só queria ir com ela.
Muito bem escrito. Parabéns.
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