domingo, 17 de outubro de 2010

Você que faz o sentido

 

Dentro.

 

- Argh.

- O que foi?

- Eu não aguento mais, estou com uma coceira insuportável no pescoço. Alergia ou algo assim, eu não sei muito bem o que é.

- Costuma ter isso?

- Não, não, nunca tive nada assim. Bom, já tive coisas, mas não no pescoço e dessa forma. Bom, você entende.

- Pode ter algo a ver com o seu cachecol, aparentemente é bem onde está o seu cachecol.

- Será? Não, não. Não deve ter nada a ver.

- E você tem o costume de usar cachecol?

- Não, na verdade não.

- Então.

- Então o quê?

- Pode ter algo a ver.

- Será mesmo? Bom, nem é meu esse cachecol. Nem sei por que eu estou usando isso agora.

- Tire o cachecol, veja o que acontece.

- Deve ser né? Aposto que o problema realmente é o cachecol. Estou começando a achar que é isso mesmo.

- Tira.

Tirei o cachecol. É, desisti dele. A coceira continua, realmente continua. Mas o processo também não deve ser assim tão automático não é? Será? Ou coloco de novo? Eu não estou assim com tanto frio, mas sei lá. É um bonito cachecol, e eu sempre achei que eu fico muito bem de cachecol. Ainda assim, por alguma razão eu não possuo nenhum. Será que tem algo a ver com essa alergia? Pode ser. É, realmente, acho que vou colocar o cachecol em algum canto. Faz sentido.  Vou deixá-lo em uma cadeira qualquer por ai, não vou devolver ainda não. É, eu vou guarda-lo por enquanto.  Ainda quero dar mais uma chance para o cachecol. Eu fico tão bem com ele. Realmente fico.

Virei-me para continuar a minha conversa com o cara, aquele que era praticamente um dermatologista, mas ele já tinha ido pra qualquer outro lugar. Graças a Deus! Não, espera, graças a alguma outra coisa. Deus não tem nada a ver com isso. Ah sim, provavelmente graças a ficarmos uns vinte minutos falando sobre coceiras, é, realmente isso faz sentido. Então olhei a minha volta, finalmente me permiti parar de verdade e analisar a situação por um momento. Estava em uma festa eu diria. Mas calma, não é uma daquelas festas “uhul” com gente maluca pelada na piscina, com “tequila shots”, “text messages”, “free massages” e tudo o mais. Não, não havia nada desse tipo de quase interessante ação social. Era mais uma reunião de pessoas. Na verdade, de fato era uma reunião de pessoas. Pessoas chatas, realmente chatas. E se eu pareço convencido me julgando mais interessante que essas pessoas, não, eu realmente não sou. Interessante, porque convencido eu devo ser um pouco. E ainda posso garantir que eu sou tão chato quanto essas pessoas, mas isso não quer dizer que eu tenho que aguentá-las. Todas bem vestidas, cada uma com a sua taça de vinho na mão, fingindo se importar com os problemas fúteis das outras. Afinal, melhor falar 20 minutos sobre coceiras do que aguentar 40 sobre como está o seu jogo de tênis, o que o seu filho babão anda mordendo ou sobre os carros mais caros disponíveis no mercado. Eu nunca entendi essa fascinação por carros. Realmente nunca entendi. Não é afinal, apenas mais um meio de transporte? Ficamos horas discutindo metrôs? Ou sei lá, cavalos? Pensando bem, acho que as pessoas realmente ficam horas discutindo cavalos. Será que ficam mesmo? Se sim, peço perdão. Eu não gosto de cavalos. Mas eu tenho uma boa desculpa para isso, os cavalos também não gostam de mim. Realmente não gostam, mas isso é outra história. E pensando bem, alguém deve discutir metrôs também. Pessoas discutem de tudo.

- Rodolfo, Rodolfo querido!

Falando em pessoas, pessoas falsas, espera ai, eu estava falando de pessoas falsas? Bom, se eu não estava vou começar agora. Estou me afundando nelas, realmente afundando e cada vez mais. E agora realmente me aparece uma das piores, Rossana Hoffman. Ou melhor, “Rrrrrossana” Porque ela busca esse “R” uns 10 minutos antes de, de fato se apresentar. E isso desde os cinco anos de idade. Nunca vi criança mais polida e inacreditavelmente insuportável do que a Rossana. “Posh” ao limite, se me permitem.

- É, oi Rossana. Como é que vai?

- Fantástica! Simplesmente esplêndida! Sabia que eu vou participar de concerto na Alemanha? De verdade, de verdade. Muito em breve, muito. Fui convidada pessoalmente pelo cônsul.

- Cônsul brasileiro na Alemanha ou alemão no Brasil? E é uma cidade alemã com um brasileiro, ou uma cidade brasileira com um alemão?

Só queria mexer com a cabeça dela um pouquinho. Dificilmente ela sabe o que é um cônsul. Mas o que é realmente incrível é o jeito como essas pessoas só vem falar com você para promoverem algo que elas estão fazendo ou então para saberem se você está fazendo algo que preste. E aí descobrem se vão te manter no seu círculo social ou não. Dá pra sentir um sincero orgulho do ser humano. O triste é como uma pessoa vazia e praticamente oca como a Rossana pode estar fazendo concerto atrás de concerto de violoncelo! Da última vez que eu chequei pelo menos, tinha que se ter um mínimo de sensibilidade artística para se tocar um instrumento clássico, não é mesmo? Ou talvez não na verdade, talvez o segredo seja não ter sensibilidade alguma. Eu não sei, me processe. Mas o que é realmente triste é que eu já me acostumei com isso tudo, as pessoas e como elas agem. Sei lá, pelo menos no meio da total frustração eu dou um jeito de me divertir um pouco. No final acho que não vale a pena não, realmente não vale a pena.

- Ah, como? O cônsul! Já o conheceu? Um belo alemão, gente finíssima. Um homem tão elegante e com boas maneiras. Gostaria de me encontrar com um desses, com certeza.

Acho que todos merecem a nota de que ela de fato tem o que? 22 Anos? É, acho que é isso. E parece que foi cuspida de um livro da Jane Austen. O pior é que no fundo eu sempre tenho a sensação de que as mulheres realmente gostariam de serem cuspidas de um livro da Jane Austen. As que se dão ao trabalho de ler pelo menos. Se bem que acho que até as que não leram. Realmente todas.

- Ah, claro. Quem sabe você não dá a sorte grande aqui nessa bela festa, não é mesmo? Aposto que devem ter até alguns alemães por ai, provavelmente.

- Com certeza, com certeza meu caro Rodolfo. Mas também tenho certeza que há vários homens elegantes por aqui que não são alemães.

Isso ela falou enquanto pegava na minha gravata e me olhava com uma cara! Meu deus! Rossana Hoffman está dando em cima de mim? Ai ai, essa gente acaba comigo. Simplesmente acaba comigo. O que ela espera ganhar comigo exatamente? Devo ser a pessoa com menos dinheiro e caráter de todo esse lugar. Acho que elas gostam do perigo mesmo.

- Bom, pode até ser verdade querida, mas eu ainda acho que eles não chegam nem aos pés de um estrangeiro bem estabelecido, não é mesmo?

Nesse momento ela certamente disse alguma coisa, mas eu parei de ouvir, completamente.  Completamente mesmo. Voltei a divagar sobre a Jane Austen e me perdi por completo neste assunto. Eu li. Bom, não tudo, claro. Qual homem que tem paciência de ler tudo da Jane Austen? Tanto não existe um, que ela morreu solteira. E no século 18. Ela devia ser tão chata e imóvel quanto os livros dela, ou pior. Provavelmente pior, porque os livros certamente passavam por todo um processo de liberdade literária e no final ainda devia acontecer um belo trabalho de edição. Ela devia ser um porre. Mas então, eu li “Orgulho e Preconceito” porque achei que precisava ler algum livro dela. Queria entender todo esse processo e o crescente interesse em misturá-la com vampiros, zumbis, robôs, ninjas e piratas. Até mesmo juntaram ela com lorde Byron! Sério? Lorde Byron? Acho mais fácil eu ser um vampiro do que o lorde Byron se envolver com uma mulher. Ainda mais a Jane, ele não teria os culhões. Bom, o livro, ”Orgulho e Preconceito” até consegue de certa forma te prender. Na verdade, não. Realmente não consegue, é só uma sucessão de bailinhos e conversas irrelevantes quanto a relacionamentos totalmente sem importância. Até a história central, toda aquela onda com “Mr. Darcy” e tudo mais, dava pra ser totalmente resolvida umas 100 páginas mais cedo. Sem nenhum problema. Talvez até desse pra resolver o livro inteiro em umas 15 páginas e ainda sobrava tempo para um bailinho final com direito a planejamento, uma boa decoração, menu personalizado e tudo o mais. Acho que o livro (e todos os livros dela na verdade) serve realmente para mostrar que relacionamentos e as mulheres em geral, principalmente as mulheres, eram complicadas no século 18 e são até hoje. Porque esse mundo aqui, essa festa é exatamente assim. Gente rica enrolando umas 100 páginas a mais para resolverem as suas vidas. Amorosas ou o que seja. Até eu acabo fazendo isso, até eu.

-... Então nós tivemos que vender o segundo iate, mas foi a melhor decisão. Papai já está comprando um novo, muito mais bonito, muito mais. Em breve devemos fazer uma festa de inauguração.

- Como?

- Ah! Ha há! Rodolfo querido, sempre sendo engraçado. Todos lá do colégio sempre me perguntam “Você ainda vê aquele palhaço do Rodolfo? Ele era o cara mais engraçado do colégio, senão da cidade!” E eu falo “Claro, claro, o vejo toda a hora! Somos bons amigos”.

Eu, engraçado? Sério isso? Qualquer coisa que eu fazia no colégio era “engraçado” para aquela gente! Realmente nunca consegui entender isso. E de fato, qualquer coisa que eu falo por essa festa também é igualmente engraçado. Eles devem ter um senso de humor muito peculiar afinal, ou simplesmente estão todos tirando uma com a minha cara a mais de 20 anos. Pode ser. Essa última alternativa é até bem provável.

- É, pois é. Saudades de todos também.

- Nunca mais se encontrou com ninguém além de mim?

Ou talvez eles simplesmente achem graça do que eles não entendem. Será que é isso? Eu nunca me considerei um cara engraçado. Duvido que eu seja de fato tão engraçado assim. Acho que eu sou uma das poucas pessoas na terra que nem ao menos sabe uma piada, uma. Não faço a menor ideia. Espera, acho que eu me lembro de uma, será? Tinha um rabino eu acho, o Ayrton Senna, não, não. Esquece, realmente não sei nenhuma. Mas talvez eu seja até um pouco divertido. É, acho que um pouquinho divertido. Acredito que eu consigo me divertir comigo mesmo, pelo menos.

- Não, acho que não. Espera ai, não, eu sempre vejo alguém. Não consigo lembrar quem.

- Ah! É a Ana? Você continua vendo a Ana? Vocês eram tão amigos, tão bonitinhos pelos corredores do colégio, dançando, cantando ou tramando alguma coisa. Ah! Todos achavam vocês muito engraçados! Há há!

“Engraçados”, de novo eu sou o engraçado da questão. Não adianta mesmo. Eles devem realmente estar tirando uma com a minha cara há vinte anos. Tudo o que eu a Ana realmente fazíamos naquele colégio era falar mal de todo mundo e explodir algumas coisas pra irritar o diretor. Como isso pode ser engraçado? Bom, o.k. Talvez isso até seja um pouco divertido, mas um pouco, e só a segunda parte. Espera ai, o que ela tinha perguntado mesmo?

- Então Rodolfo, ainda vendo a Ana? Ou vocês perderam contato? Seria tão triste se vocês perderam o contato, como um filme! Um drama terrível! Todos achavam que vocês iam no mínimo casar! Há há! Podíamos até ver como iam ser os filhinhos.

Claro, era sobre a Ana. Peço um segundo agora, é, bom, talvez um pouco mais do que um segundo, mas ainda é pouco tempo. Imaginem aquelas montagens de filme, aquelas belas cenas de pessoas se divertindo nos tempos de colégio. Andando pelos corredores, tirando sarro das pessoas, jogando game boy do lado de fora da quadra de squash e com certeza, rindo. Acima de tudo, rindo e se divertindo muito. Talvez por isso afinal, que eu seja o palhaço. O palhaço é o que realmente se diverte, não é mesmo? Ou talvez não, talvez ele seja só mais um. Não duvido na verdade que o palhaço seja o que está realmente triste. Quem anima o animador? De que um palhaço ri? O palhaço chora, no mínimo. Creio que no final, tanto faz. Mas pelo menos esse palhaço tinha outra palhaça nos tempos de colégio. E ela certamente fazia toda a diferença, toda a diferença mesmo. Dois palhaços podem trazer humor um pra vida do outro não é mesmo? Boa companhia realmente faz todo lugar ficar no mínimo suportável, talvez até este aqui. Será? Eu realmente não saberia dizer. Ainda restam piadas?

- Não, eu nunca mais vi a Ana na verdade.  Ela tem a vida dela, eu tenho a minha. Seguimos nossos caminhos, é, cada um foi para um lado na verdade.

- Ah! Ainda assim! Ainda assim! Tão triste! Tão... Rodolfo, Rodolfo.

Tão Rodolfo Rodolfo?

- E o que ela está fazendo afinal?

- Ah, acho que nada. Nada mesmo.

A Ana realmente não está fazendo nada? Talvez a história não seja bem assim. Eu não estou fazendo nada. E eu sei disso, até ela sabe disso. Na verdade todo o problema começou por ai, por essa linha de pensamento. Isso se ainda for uma problema, acho que já nem pode ser classificado mais como um problema. Agora é só o passadomesmo . A Ana era expansiva, criativa, maluca. Não necessariamente nessa ordem, mas muito, até demais. Ela era isso, era “muito” de tudo. Não abraçava o mundo porque o mundo a abraçava antes. E foi isso que realmente aconteceu, ela o abraçou de volta. Eu sabia que isso iria acontecer, eu antecipava isso. Mas esperava poder mudar a tempo. Esperava não ser o palhaço que chora sozinho. Mas o quanto que ela precisa do mundo (e o mundo precisa dela), eu preciso disso aqui. Esse lugarzinho, esse mesmo. Realmente preciso. É horrível ter que admitir isso, mas não havia outro jeito. Preciso daqui pra me expressar. Desse mundo que eu aprendi a odiar e que me dá tanto para dizer. O que eu iria fazer longe disso? Sem um pouco de dificuldades, sem sofrimento, não há criação. Escolho estar desconfortável para um bem maior, ou talvez não. Mas quem vai saber?

- Na verdade, acho que ela está em cuba. Tenho quase certeza. Só que até hoje realmente não entendi se ela está trabalhando com abelhas ou ervilhas, ela falou em espanhol e bom, não faço a menor ideia. A menor ideia. A pronúncia é bem parecida.

- Oh! Parece esplêndido, de verdade.  Cuba? Aquela garota sempre mirou às estrelas, não é mesmo? Há! E a sua vida Rodolfo querido? O que está fazendo?

Ah! A pergunta.

- Eu... Bem, é complicado na verdade. Posso dizer que continuo escrevendo, é. Os meus poemas de sempre e agora comecei a trabalhar em um romance que eu quero escrever há muito tempo. As coisas estão andando, com certeza. Realmente indo para frente.

De repente, o caos. Um barulhinho repetitivo insuportável, pior, muito pior do que isso na verdade. Palavras se repetindo incessantemente em conjunto de um ritmo extremamente repetitivo. O que seria isso? No mínimo o apocalipse. As trombetas, ou sei lá. Realmente nunca tive paciência de ler o apocalipse. Se bem que, alguém teve? Todo o conhecimento das pessoas sobre o apocalipse vem do “fantástico”, ou sei lá, mais recentemente, da Wikipédia. O meu também, claro.

- Ah! Desculpe Rodolfo, esse é o meu celular. Com licença.

Ela então tirou da bolsa dois celulares, claro. Alguém me explique, por favor, ou melhor, não me explique. Senão acho que pode até piorar. Mas vou jogar a ideia no ar do mesmo jeito. Porque aqui tem tantas pessoas de vinte e poucos anos com dois celulares? Porque raios alguém tão novo precisa de dois celulares? Todos estão em cargos de suma importância para alguma empresa, ou pior, têm uma empresa? Não pode ser, eu pelo menos me recuso a acreditar. Eu acho que realmente quanto mais celulares você tem, menos da sua alma ainda resta. Celulares e alma, obviamente inversamente proporcionais. Eu só fui comprar um celular no ano passado, um muito simples e que está sempre desligado. Isso faz de mim um merda por acaso?

- Então Rodolfo, é a minha secretária. Eu vou lá fora atender, beijinhos.

Secretária? É, eu realmente sou um merda.

Ela se foi por fim, agora, agora sim era um momento crucial. O momento mais importante que pode surgir neste tipo de festa. Quando você acaba de falar com alguém, mas logo quando acaba. Um momento de paz, um “buffer” de pessoas inconvenientes. Um respiro, por favor, só um respiro. Enfim realmente tenho a minha liberdade, nem que seja por um segundo. Se eu der sorte quem sabe eu não consiga até escapar desse lugar, já está na hora mesmo. Vou tentar sair daqui, isso, claro. Vamos lá, realmente buscar o meu respiro real.

- Rodolfo? É você meu filho?

Tão perto, realmente muito perto. E quem vinha agora buscar a minha atenção? Nada a mais nada a menos do que o ex-diretor da minha escola, Senhor Rufus. Rufus e as suas gravatas. Quase vejo as gravatas antes de ver o Senhor Rufus.

- Ah, oi Senhor Rufus. Tudo bem? Como vai essa vida?

O velho Rufus era certamente “algo” que você não via todos os dias, mas ao mesmo tempo muito mais normal do que provavelmente você pensou que ele era no começo deste período. O Rufus é gordinho, baixinho, meio careca, não cheira muito bem e, porque não? Meio perdedor também. Todas as vezes que eu falo com ele, não consigo responder de imediato o que ele me pergunta por que a minha cabeça se perde completamente pensando o quanto ele é parecido com o prefeito daquele joguinho “Harvest Moon”. Sabe? Aquele jogo da fazendinha? Isso, esse mesmo. É sério, sem brincadeira. Exatamente igual. Um pouco mais estranho, talvez, mas é certamente no mínimo um irmão perdido e foto-realista. Faltava só uma cartola vermelha. Na verdade o meu irmãozinho até hoje acredita que ele é, de fato, o prefeito de “Harvest Moon”. E eu também afinal.

- Muito bem, vai muito bem. Na verdade, tudo está de vento em popa! Este ano de... Que ano que nós estamos mesmo?

- 2010?

- Isso, isso! Este ano de 2010, está sendo o meu melhor ano em no mínimo 30 anos! 30 anos!

- E o que aconteceu 30 anos atrás?

- Como? Pode repetir isso?

- Você se lembra do seu último melhor ano? Sei lá, eu realmente não lembro. Então não se sinta pressionado. E eu tenho certeza de que vivi menos anos, então pra mim era para ser tecnicamente mais fácil.

- Ah! Claro, claro. Sim, me lembro.

- E qual foi?

- Sem dúvidas, um ano antes do meu casamento.

- Oh, claro.

- Hoje por sinal, também é um dia especial! Comprei está bela gravata! O que você acha meu jovem?

Tinha esquecido (talvez de propósito, muito provavelmente na verdade) de explanar sobre a característica principal do velho Senhor Rufus. As gravatas. Suas gravatas mais do que extravagantes e desnecessárias. Além de ser praticamente o seu único assunto.  Eu agora era confrontado quanto a sua gravata roxa com pequenos desenhos que eu não consegui diferenciar entre esquilos ou guaxinins. Na verdade, provavelmente não é nenhum dos dois.

- Eu sei o que você vai dizer meu jovem, “Oh, mas esse velho triste e acabado acha que seu dia é especial simplesmente por comprar uma mísera e ínfima gravata! Que vida miserável.” Mas acredite em mim, comprar gravatas traz sim um prazer indescritível para um velho como eu.

Acho engraçado como professores, mestres e coordenadores da educação em geral, sempre se desconstroem exageradamente quando você sai do colégio. É realmente quase como trabalhar para aquelas linhas de telefone que ajudam suicidas em potencial. Impossível não sair um tanto deprimido.

- Bom, Senhor Rufus, Eu não sei nada sobre gravatas. Na verdade elas realmente não me interessam muito. Mas você me diga, ela é bonita?

- Ah, meu jovem. Comprar gravata, algo que todo homem deveria fazer de vez em quando. Simplesmente isso.

Isso na verdade fez bastante sentido, é, eu também acho. De vez em quando deve fazer algum bem, de fato. Vou fazer isso amanhã, talvez.

- E aquela garota que andava sempre com você? A Ana! Ela está aqui também? Vocês já se casaram?

Além de comprar gravatas, há um momento na vida de um homem que ele simplesmente tem que fugir.

- Bom Senhor Rufus, na verdade eu tenho que fazer umas coisas pra minha mãe. Acho que eu já vou indo embora.

- Claro, claro meu filho. Vá com deus e mande um beijo para a senhora sua mãe!

- Claro, com certeza. Mando sim.

Porta, porta, porta. Saí praticamente correndo. Bom, o máximo que se pode correr com uma taça de champanhe na mão, que por sinal, como veio parar aqui? Eu já estava encostado na porta quando veio meu desespero final.

- Rodolfo!

Gritou o velho Rufus.

-Sim?

- Não se esqueça das gravatas hein! Pense nas gravatas.

Ufa! Realmente, ufa! Fiz que sim com a cabeça e enfim saí daquele lugar, chega. Preciso de ar.

                                                                   Fora.

Claro que eu trouxe o champanhe pra rua, óbvio. Tinha absoluta certeza que eu ia acabar fazendo isso. Ah, e de que adianta reclamar? Pelo menos tenho algo com o que me entreter, é, uma taça de um bom espumante. Comecei a caminhar, caminhar e caminhar. Perambulando essas ruas escuras e absolutamente vazias, trilhando um caminho que eu já percorri tantas vezes que já é automático. De verdade, às vezes eu realmente acho que só existe um lugar pra se chegar ao final. Que a caminhada vai ser sempre a mesma. Eu passo por esses mesmos lugares todos os dias e é como se não fosse possível escolher um caminho alternativo ao de sempre. Ou ainda pior do que isso, muito pior, como se todos os caminhos realmente levassem até o mesmo lugar. Isso é o que essa cidade me passa agora, já chegou a esse ponto. E ainda assim estou aqui, caminhando por essa linha de sempre, enquanto eu bebo champanhe. Porque não, não é mesmo? Já que estamos aqui, um brinde! Um brinde às resoluções e suas infinitas evoluções! Ou talvez eu já esteja um pouco bêbado. Provavelmente. O que a Ana ia achar disso aqui? Não faço ideia, não, não, faço sim. Eu sei até o que ela iria dizer, parece que eu posso ouvir na verdade. “Não se preocupe tanto, não analise tanto as coisas, olha bem isso cara! Você está caminhando no meio da rua de madrugada, bebendo uma taça de campanhe!” Simplesmente transformar o óbvio no que ele simplesmente é. Essa é a Ana. Não é nem ver o lado bom das coisas, não, ela nem acreditava nisso. É simplesmente uma questão de ver as coisas como elas são. Porque elas certamente já são belas pela simples razão de serem elas. Realmente não há nada mais belo do que simplesmente o real.

- Ei!

Um som, alguém me chamou de repente, aqui no meio da rua, de madrugada, enquanto eu bebo uma taça de champanhe. Confesso que eu fiquei um pouco assustado, mas depois de uma breve procurada (bem breve mesmo), logo vi a única luz acessa em um raio de sei lá quantos metros. Nunca entendi essas coisas, até hoje não sei o que é um quilômetro direito. Bom, a luz era de uma banca. É, uma banca de revistas. Semiaberta e com uma garota segurando umas revistas ao lado da porta. Poético de certa forma, tenho certeza.

- Ei.

Eu disse de volta, achando que era provavelmente a melhor resposta a tal pergunta. Se bem que ela não fez de fato uma pergunta. Então bom, deve ter sido a melhor alternativa de qualquer forma.

- Você está tipo, tomando champanhe em uma taça, no meio da rua de madrugada? Ou é só impressão minha?

- E você por acaso está segurando revistas no meio da rua de madrugada?

Ela olhou pras revistas rapidamente e logo me encarou, mas de uma forma amigável, com certeza amigável.

- É, basicamente isso.

- Eu também, basicamente isso.

- Segurando revistas?

- Bebendo champanhe, se bem que na verdade acabou o champanhe. Agora é só mais um adereço, como um relógio, uma touca ou uma tatuagem talvez.

- E tatuagens contam como adereços?

- Hum, bom, acho que sim. Não, não deve ser, na verdade. Será?

- Podemos discutir sobre isso.

- Já não estamos fazendo isso?

- É acho que sim, mas você não quer entrar aqui na banca um pouco? Eu tenho que passar a madrugada aqui arrumando umas coisas. Poderia conversar com um cara criativo como você.

Geralmente eu não entraria, realmente não entraria. Não sei, eu nunca soube ser espontâneo. Preciso de certa certeza, ainda mais nessa vida já tão vaga e cheia de possibilidades. As pessoas não acreditam, mas eu virei vegetariano por que a carne simplesmente acrescentava muito nas minhas opções de comida. Eu ficava horas tentando me decidir e acabava não comendo nada. Mas às vezes, muito às vezes, você simplesmente sabe.

- Tudo bem, por mim. Posso entrar, pode ser interessante. Vamos lá.

Mas ela já tinha entrado claro, naturalmente fui logo atrás. Era uma banca clássica, não, isso não quer dizer que ela vendia clássicos ou algo assim, ela simplesmente era como você imaginaria uma banca pequena e marota no meio da rua. Simples e certamente pacata, mas ao mesmo tempo passava uma sensação de que estava ali a gerações, de que agora eu entrara para fazer parte da história daquele lugar. Realmente firmar a minha marca ali para sempre, não deixar aquela pobre banca me esquecer. Pra eu também não me esquecer dela, afinal. Já sabia que realmente não queria esquecê-la.

- Senta ai em algum canto, eu tenho que ficar arrumando algumas coisas.

Agora, pela primeira vez, pude realmente nota-la. Não a banca, e sim a garota das revistas. Por incrível que pareça eu não gosto de longas descrições, na verdade, não gosto de descrições em geral. Eu poderia passar e repassar tudo que eu achei dela e tudo que eu pensei sobre ela, mas o que ia adiantar? Ia dar para quem quer que leia, a simples imagem falsa do que ela poderia ser. Deixo todos realmente à liberdade para cria-la, mas não posso ficar sem falar nada. Então simplesmente digo que ela era tudo que eu esperava que ela fosse.

- Então... Como vão as coisas?

- Porque eu responderia algo tão intimo para alguém que eu não sei nem o nome?

- Rodolfo, meu nome é Rodolfo.

- Rodolfo? Parece inventado.

- Rodolfo? Mas é um nome tão comum, eu conheço pelo menos, acho que pelo menos uns dois Rodolfos.

- Pois é, é bastante comum mesmo. Em, sei lá, novelas mexicanas. No máximo.

- Bom, é meio que o único nome que eu tenho. Qual seria o seu nome? Esse que é aparentemente tão melhor do que Rodolfo.

- Nina. E eu não disse que é melhor do que Rodolfo. É que tipo, Rodolfo era o nome do meu gato. Há uns três gatos atrás.

- Nina? Não quero saber de apelidos marotos e nomes carinhosos da segunda série, quero saber o nome de verdade. Se fosse assim eu tinha dito o meu apelido também.

- E qual é o seu apelido?

- Bom, eu nunca tive, de fato nenhum, mas poderia ter. Realmente poderia.

- Nina Carolina. Esse é o meu nome, de verdade.

- Nina Carolina? E você tem problemas com o simples nome “Rodolfo”?

- Não tenho nenhum problema com “Rodolfo”. É só que eu achei diferente, distinto do comum. Nada mais do que isso.

- Bom, “Nina Carolina”. Meio que rima não é mesmo? Acho que eu gosto disso.

- Do meu nome?

- É, esses nomes com certo ritmo me agradam. Eu gosto de ritmo. Coisas que tem algum balanço, um equilíbrio. Ao contrário da minha vida.

- Eu prefiro o caos e agitação de uma banca de revista mesmo. Como a minha vida.

- Eu ainda tenho que aguentar o caos e a agitação da alta sociedade. E não é nada fácil, acredite. Realmente não é fácil.

- Alta sociedade é? Pois é, realmente não deve ser nada fácil ser rico.

- Não, não, calma. Eu sei o que parece, sei bem. A vida inteira eu passei por isso. Mas realmente não é tão fácil, sério.

- Explique-se então. Nós temos tempos. Bom, eu tenho pelo menos.

- Eu tenho também, tenho mesmo. Nunca tem nada me esperando.

- Sempre tem algo nos esperando.

- É, bom, eu estava em uma festa agora há pouco.

- Por isso o champanhe?

- É, e de repente, de repente eu percebi que tudo ali era falso. Não existia uma simples gota de sinceridade em todo aquele lugar. Pessoas falsas vivendo vidas falsas da forma mais falsa que elas encontraram. E tudo isso Por quê? Todos ainda pareciam tão, felizes. Mas eu sei que não tem como eles estarem realmente felizes, não pode ter.

- Quando foi que você percebeu tudo isso?

- Há mais ou menos uns quinze anos.

- Oh.

- E eu me sinto tão sozinho sabe? Preso nessa bolha, essa bolha de mentiras que todas essas pessoas criaram e não tive nem a escolha de não participar dela. Você é jogado nessa vida de repente e é isso. O dinheiro não faz a menor diferença, realmente não faz.

- Eu consigo imaginar. Desculpe, acho que no final não é fácil pra ninguém mesmo.

- Exato, é isso mesmo. Isso que é realmente assustador. Ninguém escapa. Do nada nós somos jogados no mundo, atirados na dura realidade,  com tudo e todos esperando que nós sejamos responsáveis. E ainda percebemos que os adultos que sempre nos deram segurança são apenas crianças assustadas, tão assustadas quanto à gente. Ninguém sabe mais ou menos do mundo. E mesmo em frente a tudo isso, essa sincera nua e crua realidade, as pessoas ainda fazem questão de levar a vida da forma mais falsa possível.  Eu simplesmente não consigo entender isso.

- É, o mundo sempre vai nos surpreender. As coisas certamente não são fáceis e nunca vão ser. A vida é dura, mas nós temos todo o potencial pra fazer tudo isso valer a pena. A cada ano que passa. Esse ano, por exemplo, foi horrível para mim e ainda nem acabou. Mas eu sei que eu vou me lembrar dos momentos intensamente bons ou ruins e ver que valeu a pena. Eu vivo por esses momentos. Não tenha tanto medo assim, confie nas coisas. Não se pode analisar tanto, tem que deixar rolar.

- Bom, creio que sim. A vida é divertida de vez em quando, é claro. Mas não fica mais fácil. Acho que na verdade é tudo uma compilação de momentos horríveis com as suas pequenas pausas para momentos quase agradáveis. Dá pra não analisar? Sempre vamos contestar algo a final. Se estiver realmente bom, em breve só pelo fato de estar bom, já não está bom. É uma constante busca por algo confortável mesmo, mas nem tanto.

- Nem tanto.

- É uma loucura. E não faz o menor sentido. O único jeito de ser feliz é mentindo pra si mesmo.

- Acho que no final a gente só quer uns momentos de alegria com os amigos, uma família esperando a gente em casa. Isso não é bom o bastante?

- Eu acho que no final é ainda mais simples do que isso, realmente mais simples. Nós só queremos qualquer pessoa que seja, que nos entenda e principalmente nos aguente um pouquinho. Só um pouquinho.

- Acho que dá pra encontrar. Não é tão difícil assim.

- Será que não? Realmente não é? Eu só queria alguém para, sei lá, ver “Top Chef” comigo. Algum desses realities shows que não fazem o menor sentido.

- Você gosta de “Top Chef”? Nem eu gosto disso. E olha que eu vejo muita bobagem na TV.

- Como...?

- Sei lá, tipo, Disney Channel.

- Oh, bom, eu não gosto realmente de “Top Chef”. Acho que ninguém realmente gosta. E na verdade eu nunca assisti mesmo, mas sei lá. Eu queria alguém pra ver pela primeira vez comigo. Ou tem que gostar de cozinhar ou algo assim?

- Acho que não. Está difícil encontrar alguém por acaso?

- É, bom, acho que sim.

- Já parou pra pensar que talvez, só talvez, ninguém faça isso? Por que duas pessoas sem a menor pré-disposição para ver um programa, veriam o programa?

- É, será? Bom, talvez.

- Tenho quase certeza.

- Me desculpe por falar tanto e tanta bobagem, de verdade. Acho que realmente me abri demais para alguém que eu conheci há vinte minutos.  Mas é que, você vai entender, estive com umas 200 pessoas hoje e a garota da banca de revistas é a pessoa mais verdadeira que cruzou o meu caminho.

- Nunca duvide da garota da banca de revista.

- E quanto ao seu caos? O que você realmente faz da vida além de organizar tudo isso aqui?

- Eu preciso fazer alguma outra coisa? Esse não pode ser o meu único emprego?

- Poxa, desculpa. É o costume.

- Há! Tudo bem. Eu faço outra coisa na verdade. Estudo filosofia, sétimo semestre. A banca é do meu pai, eu ajudo aqui de vez em quando. Até que eu me divirto, às vezes aparece algum maluco bebendo champanhe no meio da rua de madrugada sabe?

- Sétimo semestre de filosofia? Não é a toa que você é tão mais bem resolvida do que eu.

- Estamos todos perdidos, meu caro. Uns fingem estar mais perto de alguma resposta, como eu.

- E depois de tanto tempo estudando filosofia, o que você realmente tem a me dizer sobre o sentido da vida? Com o mínimo de palavras possível.

- O mínimo possível?

- É, o mínimo. Uma pequena sentença. 

- Você que faz o sentido.

- Poxa, isso faz sentido. Realmente.

- E qual o sentido que você anda se dando?

- Acho que eu escrevo, ou pelo menos tento, sei lá.

- O que você escreve?

- Poemas, sempre poemas. Há um tempo venho tentado escrever um romance, ou no mínimo acabar um conto, pelo menos.

- Soa como no mínimo pretensioso. Não necessariamente em um mau sentido.

- Verdade e deve ser mesmo. Mas a escrita pra mim é realmente necessária, é uma simples conversa comigo mesmo, sem precisar de um interlocutor. Simplifica as coisas para mim.

- Parece triste.

- É, provável. Com a poesia então, foi-se o tempo em que ela servia pra me confortar, agora é simplesmente a certeza do meu próprio desespero.

- Pra que escrever então moço?

- Sei lá, eu realmente preciso disso. Acho que esse que é o meu sentido.

Ela sorri, acho que eu entendo.

- E o seu sentido?

- Viver.

Eu sorrio, acho que ela entende.

- Argh.

- O que foi?

- Eu estou com uma coceira insuportável no pescoço, realmente insuportável. Alergia ou algo assim, eu não sei muito bem o que é.

- Costuma ter isso?